Ninguém está a salvo
'Vingadores — Guerra Infinita' reúne uma legião de super-heróis contra o maior dos inimigos. Não há ser vivo que possa se esconder do vilão Thanos
Diz-se que comemorar o aniversário antes da hora dá azar, mas os Estúdios Marvel, com bom motivo, provavelmente não estão nem aí para esse tipo de superstição. Chegando aos cinemas uma semana antes da data oficial dos dez anos de início da Era Marvel (o relógio começou a contar com o lançamento de Homem de Ferro nos Estados Unidos, em 2 de maio de 2008), Vingadores — Guerra Infinita (Avengers: Infinity War, Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país e em quase todo o mundo, vem acompanhado de previsões intrépidas. Estima-se que, feitas as contas na manhã de segunda-feira, o 19º filme produzido pela editora de quadrinhos que se desdobrou em estúdio terá arrebatado de Star Wars — O Despertar da Força o recorde de renda no fim de semana de estreia — uma distinção que, no mercado cinematográfico atual, equivale ao ouro olímpico na corrida dos 100 metros (a Disney só não está preocupada com a concorrência porque, além de ser dona da LucasFilm, ela é dona também dos Estúdios Marvel; em qualquer caso, a medalha é dela). Em 2015, a ressurreição de Star Wars arrecadou 248 milhões de dólares na bilheteria americana nos seus primeiros dias em cartaz, e seguiu tilintando até a marca dos 2 bilhões. Os dois primeiros Vingadores acumularam, respectivamente, 1,5 bilhão e 1,4 bilhão de dólares. Ou seja, há muita distância para cobrir. O que não falta a Guerra Infinita, no entanto, são pernas — pares e pares delas. Primeiro, porque a nova aventura dos Vingadores já vem no embalo de Pantera Negra (1,3 bilhão de dólares de bilheteria, e contando), sucesso que ultrapassou até as projeções mais otimistas da Marvel. Depois, porque os diretores, os irmãos Anthony e Joe Russo, põem praticamente todo o time na pista: entre Vingadores, Guardiões da Galáxia, o contingente do reino de Wakanda e agentes avulsos, há mais de vinte super-heróis em cena — além de uma boa dezena de supervilões e outro tanto de heróis muito bem treinados, mas sem poderes especiais. Uma superpopulação, enfim.
E superpopulação — ou, mais precisamente, como dar um jeito nela — é justamente a preocupação de Thanos (Josh Brolin, sob várias camadas de computação gráfica), o vilão de massa colossal, queixão proeminente e poder indestrutível que anda atrás de um instrumento que lhe permita otimizar os genocídios pontuais que ele pratica, passando de um só golpe para o genocídio universal. Thanos é um malthusiano: acredita que o destino de todo planeta habitado é atingir um ponto de inflexão perverso, a partir do qual os recursos serão insuficientes para a população crescente. Foi o que aconteceu com seu planeta de origem, e ele julga que muito mais sensato do que enfrentar a escassez, a desertificação, a poluição e a morte lenta é impedir que esses males se instalem, desarmando a bomba demográfica. O que, no seu entender, implica exterminar metade de cada uma das populações espalhadas pelo universo.
Para cumprir tarefa tão extensa, Thanos deseja reunir na manopla que lhe cobre a mão esquerda todas as Joias do Infinito — seis gemas que concentram as forças do universo e foram forjadas ao mesmo tempo que ele, durante o Big Bang. A cada Joia que Thanos conquista, ele, seus asseclas e seus exércitos de criaturas lapidadas pela engenharia genética se tornam ainda mais impressionantes. E as chances de que venham a ser derrotados, ainda mais ínfimas. O momento é de crise definitiva. Daí os super-heróis que andavam dispersos por aí em pequenos grupos, separados por rixas ideológicas ou disputas pessoais, colocarem suas pendengas de lado para, novamente, unirem-se contra um inimigo comum. A diferença com que Guerra Infinita acena em relação a outras tramas dessa estirpe é de escala: tão extremas são as circunstâncias que, para muitos desses personagens, esta talvez venha a ser a última batalha (há de levar em conta, é claro, que no mundo dos super-heróis nem a morte é necessariamente irreversível).
As Joias do Infinito são peças-chave do “Marvelverso”, ou “Universo Marvel”, e um dos vários elementos que interligam os dezenove filmes produzidos até aqui. Elas já viajaram um bocado de filme a filme. O Tesseract, ou Joia do Espaço, por exemplo, foi empregado durante a II Guerra Mundial na fabricação das armas da organização nazista Hydra; ultimamente, estava sob a custódia de Asgard, o planeta do deus Thor (Chris Hemsworth) — que tem chance de sair deste capítulo como o integrante mais aplaudido do grupo. A Joia do Tempo pende todo o tempo do pescoço do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch), enquanto a Joia da Mente mora na testa do androide Visão (Paul Bettany). A do Poder foi entregue por Peter Quill (Chris Pratt — assista a uma entrevista em vídeo do ator no site de VEJA) aos cuidados de uma força policial, e a do Éter está nas mãos do mercenário Colecionador (Benicio Del Toro). Só uma delas, a Joia da Alma, tem paradeiro ignorado, mas é bem possível que esteja em algum lugar da Terra. Ou seja, as lutas e batalhas de Guerra Infinita se desenrolam pelas galáxias, e também em Nova York e na África Central, realinhando as afinidades entre os personagens e alterando as correlações de forças.
Na tela, isso se traduz em uma sucessão sem precedentes de cenas monumentais. É o que pede uma reunião tão populosa. E serve também como vacina contra uma doença típica dos “filmes do meio”, os que funcionam como conduto ao grande desfecho — a sensação de inconclusão que atiça a plateia, mas também a frustra, e que neste caso terá de ser suportada pelos fãs por mais 371 dias, até que a segunda parte deste Vingadores, ainda sem título, chegue aos cinemas. Conhecidos — e celebrados — pelo estilo enxuto, musculoso e realista que imprimiram aos dois últimos Capitão América, os irmãos Russo aderem aqui ao tom grandiloquente e ao visual fortemente apoiado na computação gráfica dos dois primeiros Vingadores. Os efeitos digitais costumam ser a praga desses enredos de destruição total, por dar a eles uma aparência genérica de tudo vale, tudo é possível. Se os Russo não conseguem escapar por completo dessa maldição, pelo menos trabalham duro para compensá-la, sublinhando a ação com aquele que é seu forte — o máximo de interação física real entre os atores — e enfatizando a rapidez e a intensidade dos diálogos.
Conforme a filiação cinematográfico-partidária do espectador, ele há de achar que está vendo mais — muito mais — do mesmo, ou há de ser arrebatado pela maneira como os diretores articulam uma quantidade tão desafiadora de subtramas, levando-as a convergir com aquilo que, nessas circunstâncias, só se poderia definir como agilidade. Trata-se de um passo crucial para a Marvel, uma vez que também seus filmes funcionam como Joias do Infinito: a cada novo episódio acrescentado ao cânone (e há pelo menos outros dez por vir), cresce a dominância da marca no panorama do cinema comercial, e mais invencível ela se vai tornando. Até aqui, as produções realizadas sob o guarda-chuva da Marvel totalizam 15 bilhões de dólares em renda global — e é fato que a aquisição, em 2010, dos Estúdios Marvel pela Disney, experiente nessa área como nenhuma outra corporação, deu um impulso extraordinário à dinâmica do “Marvelverso”. Mas contribuíram para a aceleração, também, produções que estão fora do escopo dessa parceria: somam outros 5,4 bilhões ao cálculo os Homem-Aranha produzidos pela Sony (antes de forma independente, e desde o ano passado sob a supervisão dos Estúdios Marvel) e os X-Men e Deadpool produzidos pela Fox (estúdio que, até meados do ano que vem, deve ter concluída a sua compra pela — quem mais — Disney). Com a soma de Pantera Negra, Vingadores — Guerra Infinita e, em julho, Homem-Formiga e a Vespa, o ano de 2018 deve ser singularmente forte na contabilidade da Marvel/Disney (e ainda há que acrescentar aí o sucesso quase garantido do Deadpool 2 da Fox). Dos 8% da bilheteria mundial que abocanharam em 2016 e também em 2017, os heróis da Marvel podem saltar para uma fatia de 10% ou até 15% — e está-se falando aí de um punhadinho de quatro filmes num universo de centenas de títulos. Isso, não há dúvida, é ser súper.
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580