Não há alternativa
O Brasil não tem saída sem um rigoroso ajuste fiscal, que só será possível com a reforma da Previdência e mudanças na Constituição
Nas últimas semanas de trabalhos legislativos antes do recesso de julho, muitos brasileiros se surpreenderam com o avanço, no Congresso Nacional, de novas medidas de desoneração tributária para setores da economia, da criação de despesas, do aumento de repasses para os estados e da criação de municípios. Esse conjunto de medidas, denominadas pela imprensa de “pauta-bomba”, ainda não foi aprovado em todas as casas legislativas e, acredito, não terá como evoluir, uma vez que fique claro para todos que sua aprovação exigirá um dos dois sacrifícios mencionados a seguir: o recuo do ajuste fiscal ou o aumento da carga tributária para que se consiga a fonte orçamentária e financeira para custear tais medidas. Ademais, novas despesas ou novas desonerações não afetarão este governo, mas sim o próximo, que já terá um gigantesco desafio fiscal pela frente.
É preciso relembrar o tamanho desse problema. Pode-se dizer que ele começou em 1988, quando o Brasil promulgou sua nova Constituição, contemplando demandas legítimas da sociedade brasileira por maior acesso a serviços públicos essenciais (como saúde e educação) e mais proteção social. Ao dispor dessas características, a Carta Magna deu início a um longo período de crescimento quase contínuo da despesa pública e da carga tributária. De 1991 a 2017, apenas no caso do governo federal, a despesa primária (que são os gastos do governo sem levar em conta o pagamento de juros) duplicou, passando de 10,8% do PIB para 19,5% do PIB, sendo que quase todo esse crescimento decorreu de gastos com a Previdência e com o benefício de prestação continuada (BPC), que concede um salário mínimo mensal a idosos de famílias pobres e pessoas com deficiência.
Esses dois programas representam hoje 11,2% do PIB e mais da metade dos gastos do governo central. Todas as demais despesas primárias do orçamento público federal (saúde, educação, segurança pública, ciência e tecnologia, saneamento etc.) ficam com uma fatia de apenas 40% do bolo orçamentário. Um exemplo dessa discrepância: enquanto os gastos com a Previdência em 2018 ficarão perto de 730 bilhões de reais, a pasta de Ciência e Tecnologia poderá gastar apenas algo em torno de 7,5 bilhões de reais.
Se somarmos quanto o governo federal, estados e municípios gastam com suas respectivas previdências, chegaremos ao número de 14% do PIB — o que é muito para um país jovem, e que envelhecerá nas próximas décadas. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, esse mesmo tipo de gasto representa uma média de 8% do PIB nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cujas populações têm uma proporção de idosos que representa quase o dobro da brasileira. A conclusão a que se chega, portanto, é que, com as regras atuais, que levam brasileiros a se aposentar, em média, com menos de 55 anos de idade por tempo de contribuição, não há como pensar em controlar o crescimento do gasto com a Previdência sem uma reforma constitucional.
Para recuperar a saúde das finanças públicas, é preciso fazer um ajuste fiscal de 300 bilhões de reais
A situação fiscal do Brasil hoje é grave. Somos uma economia de renda média com uma carga tributária de 33% do PIB, porcentual próximo à média dos países da OCDE, que têm renda alta. Na comparação com países da América Latina, de renda mais baixa, nossa carga também é mais elevada. Apesar do alto peso dos impostos, nosso déficit primário (a diferença entre receitas e despesas, sem considerar o pagamento dos juros) é de 2% do PIB. Para recuperar a saúde das finanças públicas, nosso desafio ao longo dos próximos anos é reverter esse quadro e transformar o déficit em superávit de 2%. Isso significa que precisamos fazer um ajuste fiscal de 300 bilhões de reais.
É possível fazer esse ajuste com novos e sucessivos aumentos de impostos? Não. A carga tributária no Brasil já é elevada e, por mais que possamos tornar o nosso sistema tributário mais eficiente, a maior parcela de arrecadação no Brasil continuará recaindo em cima de impostos indiretos, que incidem em cascata, e que são justamente aqueles que tornam os produtos sempre mais caros.
Um retrato claro dessa anomalia é o fato de brasileiros até recentemente viajarem para nações ricas, como os Estados Unidos, para comprar roupas. Como explicar que um país rico tenha produtos mais baratos que um país de renda média? É justamente a carga tributária. E esses impostos, apesar de altíssimos, têm sido insuficientes para arcar com as despesas do setor público.
O ajuste fiscal de que o Brasil precisa passa, imprescindivelmente, por controlar o crescimento do gasto público. A Emenda Constitucional 95/2016, a Emenda do Teto dos Gastos, estabelece que até 2026 o crescimento real da despesa primária do governo central seja zero, o que significa uma economia entre 4 e 5 pontos do PIB — dinheiro suficiente para alcançarmos os 300 bilhões de reais de ajuste fiscal necessário. O desafio é que não há como cumprir essa regra sem aprovar urgentemente uma reforma da Previdência e sem mudar diversas políticas públicas que não trazem o retorno esperado. Não há alternativa. Apenas no caso do governo federal, o gasto com a Previdência cresce entre 50 e 60 bilhões de reais por ano.
Nos últimos três anos, várias outras despesas não obrigatórias foram cortadas para abrir espaço no orçamento para o pagamento daquelas que são obrigatórias, em especial os gastos com a Previdência. Para que se tenha a dimensão do enrosco, mesmo que, por um milagre, toda a despesa não obrigatória do governo programada para o ano fosse “zero”, inclusive o investimento público, ainda assim ficaríamos com um déficit primário de 35 bilhões de reais, quando, na verdade, precisaríamos de um superávit de 140 bilhões de reais para fechar o ano no azul!
Como praticamente toda a despesa obrigatória (excluindo a financeira, como o pagamento dos juros) se refere à Previdência, cujas regras estão definidas na Constituição, não há como evitar uma reforma constitucional para que se consiga mudar o regime previdenciário. Aprovar novas desonerações, subsídios ou a criação de mais despesas obrigatórias no contexto atual vai exigir, invariavelmente, cortes mais profundos em outros gastos, uma reforma da Previdência mais dura e aumento de impostos. Sem falar no risco da volta da inflação alta, que hoje está em um patamar baixo em decorrência da política monetária do Banco Central.
Não há alternativa. Precisamos avançar no ajuste fiscal para manter a inflação baixa, os juros baixos e a volta do crescimento econômico. O debate político de como fazer o ajuste é bem-vindo e necessário. Evitar esse debate é injusto com a sociedade, em especial com aqueles que mais dependem do acesso a serviços públicos essenciais, como saúde e educação.
* Mansueto Almeida é secretário do Tesouro Nacional e doutor em políticas públicas pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT)
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592