Lula recebia pacotes de 40, 50 000…
Em sua proposta de delação a que VEJA teve acesso, Palocci diz que entregava dinheiro regularmente ao ex-presidente e que viu Lula "dominado pelo poder"
E também:
– Empresas pagaram propina em troca de influência no governo
– O suborno que impediu que o petrolão fosse descoberto anos antes
– A empresa que foi criada para financiar as campanhas do PT
– A trama para tentar barrar as investigações da Lava-Jato
Antonio Palocci pode ser acusado de muita coisa, menos de não conhecer os segredos do PT e de seus dirigentes. Fundador do partido, ex-prefeito de Ribeirão Preto, ex-ministro da Fazenda do governo Lula e ex-ministro-chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, Palocci esteve no centro das mais importantes decisões do PT nas últimas duas décadas. Por isso, sua delação é considerada letal para o partido e seus principais líderes. Em depoimento ao juiz Sergio Moro, o ex-ministro já contou que houve “um pacto de sangue” entre Lula e a Odebrecht. Pouco antes de deixar o governo, em 2010, o então presidente acertou com o empresário Emílio Odebrecht uma espécie de pacote de aposentadoria, segundo o qual teria à sua disposição um fundo de 300 milhões de reais, receberia uma remuneração regular disfarçada de palestras e ainda ganharia agrados pontuais, como a reforma de seu sítio em Atibaia. A revelação, partindo de quem partiu, foi comparada a um tiro no coração do ex-presidente — razão pela qual Lula se empenhou, em seu depoimento ao juiz Moro na quarta 13, em desqualificar Palocci.
Mas há outras histórias mais graves e comprometedoras para Lula, Dilma, o PT, aliados, magistrados e grandes empresários. Preso há quase um ano, Palocci viu seu poder e prestígio evaporar-se. Condenado a doze anos de cadeia pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, cedeu aos apelos da família e decidiu colaborar com a Justiça. VEJA acompanhou os desdobramentos das negociações do ex-ministro com a Lava-Jato e teve acesso a parte do conteúdo do que ele pretende delatar. As histórias de fraudes, subornos e enriquecimento ilícito que ele se propõe a entregar às autoridades, muitas das quais documentadas, já constituem um calhamaço de mais de quarenta anexos com centenas de páginas destinadas, sobretudo, a devassar os subterrâneos dos governos Lula e Dilma. Naturalmente, as revelações não constituem prova em si e, no decorrer da investigação, terão de ser comprovadas.
Os trechos mais surpreendentes da delação do ex-ministro dizem respeito ao seu relacionamento financeiro com o ex-presidente. Palocci garante que Lula não apenas sabia dos esquemas ilegais como construiu um belo patrimônio pessoal com a corrupção. O ex-presidente, declara ele, orientava pessoalmente como o dinheiro desviado da Petrobras deveria ser usado para bancar o projeto do PT — e também reservava um quinhão para si.
O ex-ministro conta que, devido à relação de confiança que sempre teve com Lula, era encarregado de executar tarefas mais delicadas. Uma delas era levar dinheiro ao presidente. Palocci afirma que, em 2010, quando já coordenava a campanha de Dilma, encontrou-se várias vezes com Lula para entregar “pequenas quantias” pedidas pelo presidente. Eram maços de 30 000, 40 000, 50 000 reais, levados a lugares previamente combinados. Palocci disse aos investigadores que Lula usava o dinheiro para custear despesas particulares. O ex-ministro narra pelo menos cinco ocasiões em que passou os pacotes a Lula. Havia também entregas de quantias maiores. Quando os pedidos de dinheiro do ex-presidente envolviam cifras mais elevadas, Palocci conta que acionava seu “faz-tudo”, o sociólogo Branislav Kontic, que deixava a encomenda na sede do Instituto Lula, em São Paulo. Tanto as “pequenas quantias” quanto as “não tão pequenas”, de acordo com o ex-ministro, saíam da conta “Amigo” — fundo que a Odebrecht criou para custear as despesas pessoais de Lula e que movimentou 40 milhões de reais de propinas.
Eram múltiplos os esquemas que alimentavam o ex-presidente. Palocci diz que Lula desviava dinheiro até do seu instituto. Existia na entidade, segundo o ex-ministro, uma contabilidade paralela que era administrada por Paulo Okamotto, braço-direito de Lula e presidente da instituição. Oficialmente, a organização recebia doações milionárias para atuar na “promoção da inclusão social aliada ao desenvolvimento econômico”, mas desviava recursos para bancar despesas do ex-presidente. Para dificultar investigações, Okamotto pedia doações em dinheiro vivo, sem passar pelos bancos. Palocci informa ainda que Clara Ant, uma das diretoras do instituto, tem todos os registros dessas operações guardados em um HD, que armazena também documentos que podem comprovar a acusação.
Palocci descreve pelo menos duas ocasiões em que Lula atuou diretamente para atrapalhar as investigações da Lava-Jato. Conta que, em março de 2016, foi chamado ao Instituto Lula para uma reunião. O ex-presidente, que acabara de ser conduzido coercitivamente para depor sobre seu envolvimento no escândalo, estava preocupado com uma informação que recebera segundo a qual seria preso. De acordo com Palocci, Lula disse que a então presidente Dilma havia dado a ideia de nomear Lula ministro para livrá-lo das mãos do juiz Sergio Moro. Lula queria aconselhar-se com Palocci. “Eu tenho a informação de que vou ser preso. Estou pensando em aceitar (o convite de Dilma). O que você acha?”, disse Lula ao ex-ministro. “Acho muito ruim. Acho que o melhor é ser preso e lutar”, respondeu Palocci, segundo ele próprio. Lula, como se sabe, foi nomeado ministro, mas acabou impedido de assumir o cargo por decisão judicial.
Outro episódio citado por Palocci é a operação que levou à nomeação de Marcelo Navarro Dantas como ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como já revelado por outros delatores, Navarro teria ganho a vaga no STJ depois de se comprometer a libertar o empreiteiro Marcelo Odebrecht, de modo a evitar a sua delação. O ex-ministro diz que o próprio Lula lhe confirmou esse acerto clandestino.
Palocci narra episódios que mostram que a ex-presidente Dilma também participava das jogadas coordenadas por Lula. Cita uma reunião, em 2010, no Palácio da Alvorada, à qual estiveram presentes Lula, Dilma, o então presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli, e ele próprio, Palocci. Em pauta, a criação da Sete Brasil, empresa que, no discurso oficial, deveria fabricar sondas de perfuração para a exploração de petróleo no pré-sal. A Sete Brasil movimentaria valores bilionários. Segundo Palocci, Lula deixou claro no encontro que parte dos recursos precisaria ser usada para custear o PT e financiar a campanha de Dilma, perpetuando o partido no poder. O ex-ministro afirma que ficou preocupado com os planos do ex-presidente: “Essa vez me assustou. Eu vi o Lula dominado pelo poder”.
Em seus anexos, Palocci também conta como Lula e Dilma acompanharam a derrubada da Operação Castelo de Areia, que descobriu, em 2009, a mesma relação espúria entre empreiteiras e políticos que viria a ser desvendada pela Lava-Jato. De início, uma liminar do então presidente do STJ, Cesar Asfor Rocha, suspendeu a operação. Posteriormente, uma decisão colegiada confirmou o arquivamento. Segundo Palocci, Asfor Rocha recebeu 5 milhões de reais em propina da construtora Camargo Corrêa para conceder a liminar. O dinheiro foi depositado em uma conta no exterior. O ex-ministro afirma que o acerto com o então presidente do STJ foi feito pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, morto em 2014. Rocha aposentou-se em setembro de 2012 e refuta a acusação. Em seus anexos, Palocci conta que o PT foi regiamente pago pela anulação da Castelo de Areia: recebeu 50 milhões de reais da Camargo Corrêa. O dinheiro foi pulverizado nas campanhas de candidatos do partido, em 2010. Uma das campanhas beneficiadas, segundo ele, foi a da atual presidente do PT, a senadora Gleisi Hoffmann.
Em outra parte explosiva do acordo, guardada a sete chaves pelos procuradores, Palocci decodifica os negócios sujos da famosa lista de clientes de sua consultoria, a Projeto, aberta em 2006, logo depois de sua saída do Ministério da Fazenda. Em quase uma década de atividade, a Projeto foi contratada por algumas das maiores empresas brasileiras, bancos e multinacionais em troca do acesso exclusivo que seu dono garantia aos mais importantes gabinetes de Brasília. Na delação, Palocci fornece as notas fiscais e as cópias de contrato e narra as histórias de corrupção que envolvem pelo menos dez grandes clientes de sua consultoria. Entre 2006 e 2015, a Projeto teve 47 grandes clientes e faturou oficialmente 107,6 milhões de reais. Parte do dinheiro foi paga por serviços lícitos, e Palocci comprova isso apresentando os relatórios de atividades que desempenhou. Já no caso da outra parcela dos clientes, que pagou propina em troca de influência, não há comprovação de serviço. Palocci promete revelar a identidade desses clientes quando fechar o acordo.
Com reportagem de Hugo Marques
Mentiroso e simulador
Para o ex-presidente Lula, Antonio Palocci sempre foi “uma das maiores inteligências políticas do país” e “mais que um irmão”. Em 2002, coube ao ex-ministro convencer o empresariado de que o candidato petista, se eleito, não enveredaria por caminhos econômicos heterodoxos. Lula se elegeu. No governo, Palocci representava a garantia de que a promessa de campanha seria cumprida — e foi. Em 2010, com a desconfiança generalizada sobre Dilma Rousseff, Palocci foi novamente convocado para o papel de âncora. Dilma foi eleita. No governo, ele assumiu a Casa Civil. Era o elo com Lula, a garantia de que nada mudaria substancialmente, o encarregado, entre outras tarefas, de pavimentar o caminho da volta do ex-presidente ao Palácio do Planalto em 2014. Essa etapa não saiu como planejado. Suspeito de tráfico de influência, Palocci caiu em desgraça logo no primeiro ano de governo, Dilma não abriu mão de disputar a reeleição e o resto já se sabe.
Esse influente e poderoso assessor foi reduzido na quarta-feira 13 à condição de mentiroso, frio e calculista, capaz de inventar histórias “cinematográficas” para se safar da cadeia e que “talvez queira um pouco de dinheiro”, segundo disse Lula em seu depoimento ao juiz Sergio Moro. O ex-presidente é acusado de receber propina da empreiteira Odebrecht. Ouvido no processo, Palocci contou que Lula fizera um “pacto de sangue” com os donos da empreiteira pouco antes de deixar o governo. Em troca de ajudar os negócios da Odebrecht, recebeu dinheiro, um terreno para construir seu instituto e outros agrados de menor valor.
Sobre a acusação, Lula nada esclareceu. Disse que nunca conversou com Palocci sobre o assunto, negou que tivesse recebido dinheiro da empresa e empenhou-se em desqualificar o ex-ministro. “Palocci, se não fosse um ser humano, seria um simulador. Ele é tão esperto que é capaz de simular uma mentira mais verdadeira que a verdade”, disse o ex-presidente. A verve de Lula sugere que ele sabe quanto é letal o que seu agora “ex-irmão” ainda tem a revelar.
Hugo Marques
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548