Epopeia em tempo real
Por que o mundo ficou mesmerizado e comovido com a saga dos meninos tailandeses que corriam risco de vida dentro de uma caverna
O presidente da Fifa, Gianni Infantino, convidou os doze garotos tailandeses e seu técnico, resgatados na semana passada em uma caverna em Chiang Rai, para assistir à final da Copa do Mundo em Moscou. “Isso seria sem dúvida um momento maravilhoso de comunhão e de celebração”, escreveu Infantino em uma carta para a federação de futebol da Tailândia. O congraçamento só não acontecerá porque os meninos ainda estarão se recuperando fisicamente da extenuante jornada de ficar dezoito dias numa caverna. Na terça-feira 10, depois que o último deles foi libertado, o jogador francês Paul Pogba dedicou aos garotos a ida da sua seleção para a final. “Essa vitória vai para os grandes heróis do dia. Muito bem, meninos. Vocês são muito fortes”, escreveu no Twitter.
Desde 23 de junho, quando o grupo ficou preso na caverna, até o resgate de todos, o time de futebol dos garotos, o Javalis Selvagens, tornou-se a equipe mais famosa da Tailândia. Elon Musk, o bilionário sul-africano presidente da SpaceX e da Tesla, mandou um minissubmarino em forma de bala feito sob medida para resgatar as crianças, mas o aparelho não foi necessário. Tudo, ou quase tudo, correu muito bem. Em Chiang Rai, a população foi para as calçadas para festejar a passagem das ambulâncias com os garotos recém-libertos. A cada salvamento, a Marinha tailandesa escrevia nas redes sociais a palavra “hooyah”, inspirada na comemoração dos fuzileiros americanos. O termo virou um dos mais usados nas redes sociais para falar sobre o assunto. Nas escolas, crianças escreveram redações sobre os treze corajosos da caverna.
A saga comoveu a todos e continua prendendo as atenções. Nada escapou aos olhares dos jornalistas que cobriram o acontecimento. Sabemos até o que os meninos estão ingerindo no hospital. Os doutores já tinham liberado o mingau de arroz e o pão com pasta de chocolate, mas não o krapao, que leva carne de porco frita e “um tipo de manjericão”. Não foi uma aventura qualquer.
Mas, afinal de contas, por que meio mundo acompanhou a saga do resgate e se comoveu com o destino dos doze meninos e seu técnico? “O resgate teve altos e baixos, protagonistas carismáticos, um bilionário que apareceu com uma tecnologia nova para vencer o mal e um final feliz. Foi como se assistíssemos a um filme em tempo real”, diz o economista e psicólogo americano George Loewenstein, da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh.
O “efeito da vítima identificável” deu a sua contribuição para cativar o planeta. Os seres humanos são muito mais propensos a se engajar em histórias quando as vítimas possuem nome, rosto, idade. Milhares de crianças podem sofrer na guerra do Iêmen, no ataque aos rohingyas em Mianmar, nos abrigos americanos ou nos sinais de trânsito das grandes cidades brasileiras. Mas, sem que a identidade das vítimas seja revelada, elas ficarão apenas nas estatísticas. Sem mais informação, é mais difícil tomar parte de uma narrativa comovente. Na Tailândia, as crianças não apenas tinham nome como havia um laço que as unia, o futebol. Os mais novos tinham 11 anos, o que espalhou compaixão. “Parece que fomos feitos para sentir mais afeto com as crias, sejam elas bebês, filhotes de gatos ou de cachorros”, diz o psicólogo português Miguel Oliveira, da Universidade de Coimbra.
Um capítulo à parte foi dedicado ao técnico, Ekapol Chantawong. Com 25 anos, ele era o único adulto na turma. De início, foi criticado por sua imprudência de levar as crianças para a caverna, quando o período de chuvas já tinha se iniciado — e os riscos de inundação eram conhecidos por todos. O grupo ignorou uma placa que avisava sobre o perigo. Mas, como nos bons filmes, uma personalidade oposta foi revelada. Ek, como é conhecido, perdeu os pais e o irmão até os 10 anos. Foi criado em um mosteiro budista, de onde saiu há três anos. Ganhou, assim, a aura mágica que essa religião assumiu no Ocidente. Ele ainda ajudou a criar um sistema de bonificação. Aqueles que recebiam boas notas na escola eram presenteados com equipamentos esportivos. Ek foi o último a ser salvo. Na caverna, ensinou os meninos a meditar, para deixá-los calmos, e compartilhou com eles o alimento que levava consigo, para mantê-los bem nutridos.
Quando o mundo foi surpreendido pela história, ficou evidente que era necessário fazer algo, ainda que não se soubesse muito bem o quê — e essa indefinição também ajudou o mundo a prender a respiração. Para acrescentar adrenalina, como nos roteiros de aventura, uma contagem regressiva foi acionada. A previsão era de chuva, e toda a caverna poderia ficar inundada, levando os garotos à morte por afogamento. Dois mergulhadores ingleses encontraram os meninos e o técnico em 2 de julho. Em seguida, a Marinha colocou nas redes sociais um vídeo do grupo confinado. Não era preciso falar tailandês ou ter estudado espeleologia para entender o que acontecia. “Para muitas pessoas, imagens são muito mais envolventes do que notícias. Toda essa história linear foi compreendida pela linguagem universal das imagens”, diz o americano Jonathan Aronson, professor de comunicação na Universidade do Sul da Califórnia.
Sem que se encontrassem alternativas para tirar os meninos de lá, ficou evidente que o caminho seria pela água, com a ajuda de mergulhadores. Não era uma saída cômoda. Todos eles precisariam se esforçar e aprender novas habilidades. Nenhum deles sabia nadar. Para levar suprimentos e, depois, guiá-los pela água lamacenta, foram recrutados quarenta mergulhadores tailandeses e cinquenta de outras nacionalidades. Um dia antes de o primeiro garoto ser resgatado, o pessimismo reinou. O mergulhador tailandês Saman Kunan, de 38 anos, morreu dentro da água após sofrer um desmaio quando voltava de uma missão. Se um adulto não resistira às adversidades, o que esperar de crianças assustadas? “As pessoas estão cansadas de histórias de tragédia, e essa foi diferente. Desde o começo, havia algo de esperança”, diz o sociólogo Louis Kriesberg, da Universidade de Syracuse, em Nova York.
Ainda que tenham sido produzidos milhares de reportagens sobre os mínimos detalhes, como os riscos de doenças devido à inalação de poeira com fezes de morcego (os meninos não viram animais lá dentro) ou a produção de ópio em Mianmar, o eixo central dessa história era fácil de entender. Doze meninos e um jovem tinham ficado presos em uma caverna e precisavam ser resgatados. “É provável que a saga dos meninos seja transformada em um filme ou série de episódios de televisão em algum momento”, disse o produtor de Hollywood Mike Medavoy, que fez um longa-metragem sobre os 33 mineiros resgatados no Chile, em agosto de 2010. Alguém tinha dúvida de que isso aconteceria?
Com reportagem de Thais Navarro
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591