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Epidemia de mentiras

Praga na política, as fake news também se tornaram um caso grave de saúde pública. Emagrecimento, câncer e diabetes são temas preferenciais das enganações

Por Fernanda Bassette, Marina Rappa e Daniel Bergamasco
Atualizado em 4 jun 2024, 16h37 - Publicado em 6 jul 2018, 06h00

Ao ser diagnosticado com diabetes, em 2013, o comerciante Augusto Simeoni, hoje com 59 anos, ouviu a orientação de tomar comprimidos diariamente, equilibrar a alimentação e fazer exercícios. Com o nível de glicemia em jejum na alarmante casa dos 600 miligramas por decilitro de sangue (seis vezes o limite para uma pessoa saudável), Simeoni não pôs em prática as recomendações. Mas seguiu à risca uma dica que achou na internet: ingerir um copo de baba de quiabo com água todas as manhãs. “Parecia uma gosma com clara de ovo, então eu respirava fundo e bebia numa golada só”, rememora ele. A fórmula mágica, que eliminaria a doença, naturalmente não funcionou. No início deste ano, a desinformação lhe custou caro: Simeoni teve um dedo do pé esquerdo amputado, depois que uma pequena ferida, “menor que um grão de feijão”, não cicatrizou devido à glicemia fora de controle.

Grave em qualquer área de conhecimento, a profusão digital de textos e vídeos enganadores pode se tornar letal quando o alvo é a saúde. Só a mentira da baba milagrosa teve mais de 485 000 compartilhamentos (sim, quase meio milhão!) em uma página do Facebook que tem o suspeitíssimo nome de Denúncia Online Internacional. Publicado em 2013 (e até hoje no ar, multiplicando-se como vírus de gripe no inverno), o post é um bom exemplo de como são construídas as mentiras on-line. A falsa notícia da baba de quiabo surgiu depois da participação de estudantes em um concurso de ciências no programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, em 2013. O grupo apresentou um experimento com oito diabéticos em que mostrava que a baba de quiabo ajudava a reduzir o açúcar no sangue — conclusão semelhante à de algumas pesquisas preliminares. No entanto, a meleca vegetal não pode ser usada como antídoto. Na TV, Luciano Huck, apresentador do programa, deu um prêmio de 30 000 reais aos garotos, mas fez a ressalva alertando o telespectador para “jamais trocar seu remédio pela água de quiabo”. Na internet, porém, o que era um experimento virou santo remédio — e a baba de quiabo acabou vendida como cura para uma doença incurável, que só em 2016 matou mais de 61 000 pessoas no Brasil. Entre outras barbaridades, o post de 2013 prometia, em mau português: “Diabete vai sumir e suas injeções nunca mais. Tudo foi Deus quem criou”.

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Sem proteção - Vacinação contra a febre amarela em São Paulo, no início do ano: 4 milhões deixaram de se imunizar (Emiliano Capozoli/.)

As fake news transformaram-se em uma grave questão de saúde pública. Por redes sociais, sites de busca e aplicativos de mensagens espalham-se milhares de receitas infalíveis, alimentos superpoderosos, estudos inexistentes ou distorcidos e outras enganações. O Ministério da Saúde, que monitora notícias falsas desde o surto da gripe H1N1 em 2009, montou no ano passado uma equipe com a função exclusiva de escarafunchar, ao longo do dia, tudo o que é publicado sobre enfermidades na web. Em 2017, o time identificou 2 200 invenções. No primeiro semestre deste ano, cerca de metade disso já caiu no pente-fino.

O mais perverso: doenças graves, que assolam e matam milhões de brasileiros, são justamente as mais usadas para fisgar leitores desavisados. Um levantamento inédito feito por VEJA recolheu 3 000 notícias sobre saúde em seis páginas do Facebook que se notabilizaram por difundir falsidades na área da medicina. Destas, VEJA selecionou cerca de 1 000 que tiveram maior número de compartilhamentos. Entre elas, descobriu-se, com a ajuda de médicos consultados pela revista, que cerca de um terço divulgava falsidades inquestionáveis. Os temas mais frequentes na lista de fake news foram dieta para emagrecer, câncer e diabetes. O Facebook argumenta que trabalha em parceria com agências de checagem de dados e universidades para identificar mentiras na rede e reduzir o alcance dessas publicações. Claramente, é um trabalho que deixa a desejar.

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A página do site Cura pela Natureza, com 3,5 milhões de fãs, é a mais popular entre as analisadas por VEJA. De nome aparentemente inofensivo, é uma bomba. Traz dicas como “beba isto (refere-se a um suco feito com pepino, limão e salsa) por trinta dias para perder até dezesseis centímetros de barriga”. A mistura pode não ser nada calórica, mas não tem o poder de dizimar a gordura do organismo. “As pessoas querem a solução mágica da água com limão mantendo sua alimentação como antes. Não vai funcionar”, alerta a nutricionista Jéssica Borrelli, que atende em uma clínica particular. Outra mentira divulgada pelo Cura pela Natureza é uma suposta dieta que “mata o câncer e destrói o diabetes” à base de alimentos como brócolis e couve. Ela teve mais de 1 300 compartilhamentos. Mas o alcance vai além do Facebook: o Cura pela Natureza está hospedado dentro do portal R7, ligado à TV Record, que destaca seus conteúdos no menu principal da homepage e nas redes sociais. Procurado, o R7 não quis comentar a parceria com o site.

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(Arte/VEJA)

Outra página carregada de mentiras perniciosas saiu do ar há cerca de um mês. Batizada de Bruno Gagliasso Amor e Fé, embromava duplamente seus cerca de 300 000 seguidores alternando manchetes forjadas (de assuntos que iam de saúde a eleições presidenciais) com fotos da vida privada do galã da Globo, dando a entender que ele próprio fazia as atualizações. Não se sabe a razão que levou os autores a tirá-la do ar. Bruno Gagliasso, que nada tem a ver com a página, diz que não entrou na Justiça. O Facebook, por sua vez, não informa se a removeu do ar ou se os autores tomaram a iniciativa de fazê-lo.

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Quem sai das redes sociais e se aventura pelo Google, o maior site de buscas da internet, encontra o mesmo ambiente infectado por mentiras. VEJA fez uma procura com os termos “cura do diabetes”. Para evitar que o algoritmo do Google levasse em conta o histórico de navegação da reportagem de VEJA, a pesquisa foi feita através de uma janela anônima. Resultado imediato: dois vídeos perigosos. O primeiro deles, com mais de 3 milhões de visualizações, aplica um truque explícito. Para ganhar credibilidade, abre com um depoimento do respeitado médico Drauzio Varella, mas, em seguida, apresenta informações sobre a cura definitiva através de uma dieta que envolve o consumo de óleo de coco — uma completa invenção. O segundo vídeo vende a cura (“em poucos dias”) ao misturar uma insólita lista de ingredientes, como pimenta dedo-de-moça, ovos crus e sal do Himalaia.

Na busca por “cura do câncer”, dois dos cinco primeiros links oferecidos pelo Google são mentiras. Um exemplo: “Ela descobriu a cura do câncer em 1951, mas eles escondem isso de você”, sugerindo uma dieta exclusivamente vegetariana para curar o mal. Consultado sobre sua responsabilidade, o Google afirma que adota medidas como a redução do fluxo de audiência e publicidade em sites mal-int­encionados. Além disso, a companhia mantém no Brasil uma parceria com o Hospital Albert Einstein, que produz quadros com informações relevantes sobre doenças pesquisadas. O resultado, porém, é bastante tímido: o espaço do Einstein não destaca o nome do centro médico nem diz que, ali, as informações são 100% confiáveis.

O ponto sensível é que, quando um embuste e um texto fidedigno são colocados lado a lado, o primeiro tende a reluzir mais que o segundo. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) publicaram em março, na revista científica Science, uma análise de 126 000 mensagens divulgadas no Twitter entre 2006 e 2017 por mais de 3 milhões de pessoas. A conclusão: a probabilidade de as fake news serem compartilhadas é 70% maior que a de uma notícia verdadeira. Não é difícil entender o porquê. “Vende-se um sonho de resposta rápida a pacientes de uma doença de tratamento demorado”, diz a dermatologista Íris Florio. Na página Bruno Gagliasso Amor e Fé, por exemplo, afirmava-se que médicos cubanos haviam descoberto como acabar com o vitiligo com uma receita simples.

A adesão às inverdades médicas on-line guarda semelhança com algo notório quando os temas são política ou moral. “As pessoas tendem a acreditar no que reforça seus medos e suas ideias preconcebidas”, observa a pediatra Nina Shapiro, pesquisadora da Universidade da Califórnia, autora de Hype, livro a respeito de mitos difundidos entre pacientes, sem tradução para o português. “Para piorar, muitas fake news sobre saúde partem de algum fator verdadeiro, que se torna perigoso ao ser exagerado.”

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Telefone sem fio – Experimento escolar com quiabo exibido no Caldeirão do Huck em 2013 (abaixo) foi deturpado em post do Facebook (à dir.) que prometeu a solução para o diabetes, uma doença incurável. O comerciante Augusto Simeoni (acima) deu prioridade à receita sobre o tratamento convencional e teve um dedo do pé amputado (TV Globo/Reproduçã/Emiliano Capozoli/Facebook/Reprodução)

Tome-se a patacoada segundo a qual a vacina contra sarampo, rubéola e caxumba provoca autismo. Duas décadas atrás, a prestigiada revista Lancet publicou artigo do então médico inglês Andrew Wakefield com dados de uma pesquisa com doze crianças que tinham traços da patologia. Em comum, anunciou o pesquisador, elas carregavam no corpo vestígios do vírus do sarampo — causado, supostamente, pela vacina. Bastou a afirmação espalhar-se para cair a imunização de crianças contra o sarampo em diversos países. Mais de vinte estudos científicos foram publicados desde então, todos desmentindo a relação da vacina com o autismo, mas o estrago continua. Passados dez anos, após a descoberta de um erro do estudo — nenhum dos menores tinha, na verdade, vestígio de sarampo —, a Lancet se retratou sobre a pesquisa, cujo conteúdo, ressaltou, era “totalmente falso”. Wakefield perdeu o registro profissional, mas o mito reverbera até hoje.

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Não existe mágica - Amanda Canabarro retardou o tratamento de um tumor enquanto apostava em suco milagroso (Eduardo Marques/Tempo Editorial/.)

E chegou ao Brasil, que já foi exemplo mundial pela sua capacidade de fazer campanhas de vacinação em massa bem-sucedidas. Graças a essa competência, o país livrou-­se da febre amarela urbana em 1942, da varíola em 1971, do tétano neonatal em 2003 e, mais recentemente, da rubéola. A poliomielite, que causa a paralisia infantil, está eliminada do Brasil desde 1989. Hoje em dia, porém, em parte por causa da disseminação de fake news que dizem que vacina faz mal e outras tolices, o Brasil está deixando de ser exemplo e, pior, está lidando com a possibilidade da volta de algumas doenças — inclusive da poliomielite. Segundo alerta feito pelo governo na terça-feira 3, cidades com cobertura vacinal abaixo de 95% estão em risco — na Bahia, por exemplo, em 15% das cidades a taxa é de apenas 50%. No início do ano, a campanha de vacinação contra a febre amarela em São Paulo começou como um fracasso. De acordo com os cálculos do infectologista David Uip, secretário de Saúde de São Paulo na época, a boataria digital foi um dos principais motivos para que até abril, no auge da transmissão, a dose tenha sido distribuída a apenas 5 milhões dos 9 milhões de pessoas pretendidas pelo governo.

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Quem compartilha essas irresponsabilidades faz vítimas como Amanda Canabarro, de 29 anos, hoje estudante de nutrição, que se submeteu a várias receitas espalhadas pela internet para tentar curar um câncer de mama descoberto quando tinha 27 anos. Chegou a tomar 3 litros de suco de graviola religiosamente todos os dias, mas nada reduziu o tamanho do tumor, então com 6,7 centímetros. Hoje, graças ao tratamento correto, seu tumor tem poucos milímetros. A advogada Krishna Caron, de 41 anos, fiou-se em uma prescrição furadíssima encontrada no Google: consumir gotas de azeite com canela antes das refeições para emagrecer. “Não deu certo, e só perdi peso quando busquei uma nutricionista”, diz.

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Conhecimento de causa - Sonia Niara, que se tratou de um linfoma, combate fake news em vídeos para o Oncoguia (Lucas Lacaz Ruiz/A13/VEJA.com)

Essa crise de comunicação na saúde pública tem um importante ponto cego: as mensagens que se alastram por WhatsApp, no qual é impossível medir o tamanho dos boatos. Por isso o aplicativo é conhecido no meio digital como dark social (rede social escura). Para minimizar o problema, o WhatsApp anunciou um teste: o destinatário é informado se o texto que recebeu foi escrito por seu remetente ou está sendo apenas encaminhado. É um tímido paliativo, como tem acontecido com medidas adotadas pelo Facebook e pelo Google, pois as mentiras não deixam de circular nem são rastreadas. “As iniciativas são positivas, mas, na prática, o número de notícias verificadas a cada dia não faz nem cócegas perto de tudo que é falso”, pondera o pesquisador Pablo Ortellado, da Universidade de São Paulo, referência acadêmica do país no tema.

O único remédio realmente eficaz contra esse mal é o acesso a dados confiáveis. Assustada com o número de pacientes que apresentavam dúvidas baseadas em aberrações lidas na web, a psicóloga Luciana Holtz, presidente do instituto Oncoguia, criou uma força-tarefa para combater a ignorância. O projeto Rede Causadores Oncoguia foi lançado em dezembro passado e já tem 33 pacientes treinados. A estudante Sonia Niara, de 27 anos, que lutou contra um linfoma há seis anos, é uma das “influenciadoras” autorizadas pelos especialistas da ONG a difundir fatos confiáveis e desmentir rumores a respeito da doença. Em vídeos divulgados no YouTube e nos textos de seu blog, a jovem fala de autoestima a cuidados na alimentação. “Quando recebemos o diagnóstico, queremos saber duas coisas: como é o tratamento e qual a chance de cura. Estou aqui para oferecer respostas certeiras.”

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(Arte/VEJA)

Há alguns espaços para enviar dúvidas específicas. Nada, é claro, substitui a conversa entre médico e paciente. Também é preciso atentar para o veículo que está difundindo a informação. Num ambiente conectado, no entanto, a responsabilidade é sempre coletiva. Se o Google ou o Facebook ainda não conseguiram enfrentar a praga das fake news, os usuários da rede que as compartilham também estão ajudando a manter o problema. Estudo realizado pelo Instituto Reuters, da Universidade de Oxford, em dezembro de 2016, mostrou que 60% dos entrevistados compartilham notícias pelas redes sociais depois de ler apenas a manchete. Agir assim hoje em dia é correr o risco de fazer mal à saúde de alguém.

Publicado em VEJA de 11 de julho de 2018, edição nº 2590

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