É o desmonte a jato
Como os irmãos Batista conseguiram desfazer-se tão rapidamente da Alpargatas e da Vigor — a Eldorado vem a seguir — para salvar os negócios da família
O prognóstico era desolador. Nos dias que se seguiram à revelação do acordo de delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista, o império empresarial construído pela dupla parecia fadado ao desaparecimento. Em uma semana, a JBS, a maior processadora de carnes do mundo e a principal empresa do grupo J&F, perdeu quase 10 bilhões de reais em valor de mercado, uma queda de 40%. Bancos credores ameaçavam endurecer a renegociação do que tinham a receber. Criadores de animais passaram a exigir pagamento à vista para vender à companhia. E havia até um movimento de consumidores para iniciar boicotes às marcas do grupo. Pois em menos de três meses o cenário se tornou bem menos plúmbeo: a JBS já recuperou 5,4 bilhões de reais em valor de mercado, enquanto a J&F conseguiu levantar 9,2 bilhões de reais com a venda da Alpargatas e da Vigor, duas das maiores empresas do grupo, o que proporcionou um significativo alívio ao caixa.
Qual a mágica por trás desse movimento? Por que a JBS vai ganhando musculatura ao passo que as empreiteiras envolvidas na Lava-Jato continuam penando para se levantar? Algumas razões explicam por que os irmãos Batista estão se saindo melhor — também — no capítulo financeiro. As empresas do grupo atuam (ou atuavam) em setores diversos, do varejo à indústria alimentícia, mas têm um ponto fundamental em comum: seu principal cliente é o mercado consumidor, e não o governo. A corrupção em obras públicas impediu as empreiteiras de fechar novos negócios com o Estado — elas perderam, portanto, o cliente mais importante e sua maior fonte de receita. O planejamento também explica a recuperação. Investigados por cinco operações da Polícia Federal, Joesley e Wesley perceberam no início deste ano que o cerco se fechava em torno de seu império e decidiram antecipar-se. Não só prepararam o acervo com provas para fundamentar as denúncias, como começaram a planejar os passos necessários para preservar o grupo. Sem apego e com o estilo ágil habitual, entenderam que seria fundamental abrir mão de alguns negócios para reduzir o endividamento e reforçar a imagem de empresa sólida num momento de desconfiança do mercado. Com a liberdade conseguida pelo acordo, os próprios irmãos conduziram as negociações, tanto em reuniões quanto nas sondagens feitas por atores do mercado financeiro.
Outra diferença fundamental em relação aos outros grupos envolvidos na Lava-Jato é que a J&F tinha (e ainda tem) empresas com grande apelo financeiro, a exemplo da Alpargatas, dona da marca Havaianas, e da Vigor. Ambas são consideradas cases de sucesso no mercado nacional e até no internacional. O controle da Alpargatas foi vendido por 3,5 bilhões de reais aos fundos de investimentos Cambuhy e Brasil Warrant e à Itaúsa, grupo controlador do banco Itaú. A Vigor, junto com uma participação na Itambé, ambas fabricantes de laticínios, ficou com a mexicana Lala, por 5,7 bilhões de reais. Foi um valor considerado alto pelo mercado. A próxima joia da coroa será a Eldorado, companhia de celulose que atraiu o interesse de ao menos três grandes concorrentes do setor. O preço vai ultrapassar com certeza os 10 bilhões de reais. Para reforçar o caixa, a JBS também vendeu suas operações no Paraguai, no Uruguai e na Argentina à rival Minerva por 1 bilhão de reais. O plano estratégico dos Batista é concretizar a venda de todos os ativos dos quais decidiram abrir mão até o fim de setembro. É um desmonte a jato, mas absolutamente necessário.
Rápida e bem planejada, a reestruturação da JBS destoa radicalmente do que está acontecendo com as empreiteiras. A Odebrecht, por exemplo, anunciou em 2016 um plano para levantar 12 bilhões de reais com a venda de ativos. Até agora, conseguiu 5 bilhões de reais, menos da metade. A empreiteira negociou a unidade de saneamento, a Odebrecht Ambiental, e sua fatia no consórcio do Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Mas não conseguiu se desfazer de ativos de sua unidade na área de transportes nem negociar sua participação no consórcio da usina de Santo Antônio. Alguns grupos, como OAS e UTC, enfrentaram tantos obstáculos para levantar recursos que só restou a saída da recuperação judicial. A principal razão para a dificuldade da venda de ativos é a ameaça de surgir um passivo inesperado no futuro decorrente das investigações da Lava-Jato. Vale lembrar que a Odebrecht montou um departamento só para cuidar do pagamento de subornos a políticos e que 77 executivos fizeram acordo de delação. Na J&F, segundo se sabe até agora, a prática dos atos ilícitos ficou concentrada na holding e na figura dos irmãos Batista. Eles relataram irregularidades em algumas operações financeiras com o BNDES e com a Caixa que beneficiaram a JBS e a Eldorado, mas nenhuma outra empresa foi envolvida até agora. “Existe uma separação clara de pessoa jurídica. A holding tem operação segregada das empresas que ela controla”, explica Carlos Ari Sundfeld, professor da Escola de Direito da FGV, em São Paulo. Ele diz que, mesmo que se comprove a atuação irregular da J&F na obtenção de crédito, é difícil apontar a responsabilidade das subsidiárias.
Apesar do sucesso inicial, ainda existem ameaças ao futuro do grupo. O Tribunal de Contas da União e a Controladoria-Geral da União podem questionar o acordo de leniência negociado com o Ministério Público Federal. Ambos os órgãos estão criando dificuldades para as empreiteiras. Mesmo com o pagamento acertado na leniência com o MPF, Odebrecht e coirmãs talvez sejam obrigadas a desembolsar alguns bilhões a mais para conseguir o “nada consta” do TCU e da CGU. É bastante provável que o mesmo aconteça com a J&F. Também não é possível dimensionar a extensão do dano à imagem do grupo, tanto aqui como no exterior. Portanto, é cedo para afirmar que o império dos Batista está a salvo e pronto para voltar a crescer. Mas o fato é que está a caminho disso.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2017, edição nº 2543