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Dentro do bolso do ditador

Ex-ministro Antonio Palocci revela, em sua delação, que Muamar Kadafi, líder líbio morto em 2011, deu 1 milhão de dólares para a campanha de Lula em 2002

Por Robson Bonin Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h25 - Publicado em 8 dez 2017, 06h00

A imagem acima foi captada no encontro da Cúpula América do Sul-Áfri­ca, que aconteceu na Venezuela em 2009. Lula era presidente do Brasil pela segunda vez e o ditador Muamar Kadafi ainda comandaria a Líbia por mais dois anos, antes de ser deposto, capturado e executado. Não é uma cena protocolar, como se observa no aperto de mão informal. A fotografia retrata dois líderes que se diziam “irmãos”. Durante 42 anos, Kadafi governou a Líbia seguindo o protocolo dos tiranos. Coronel do Exército, ele liderou um golpe em 1969. No poder, censurou a imprensa, reprimiu adversários e impôs leis que permitiram punições coletivas, prisão perpétua, tortura e morte a quem contrariasse o regime. Dinheiro líbio também financiou grupos terroristas e movimentos políticos em vários cantos do planeta. Entre os que receberam recursos da ditadura líbia estavam, de acordo com o ex-minis­tro Antonio Palocci, o PT e seu líder máximo, o ex-presidente Lula.

A revelação de Palocci está contida na sua proposta de delação entregue ao Ministério Público. Segundo ele, em 2002 Kadafi enviou secretamente ao Brasil 1 milhão de dólares para financiar a campanha eleitoral do então candidato Lula. Fundador do PT, ex-­prefeito de Ribeirão Preto, ex-ministro da Fazenda do governo Lula e ex-­chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, Palocci esteve no centro das mais importantes decisões do partido nas últimas duas décadas. Condenado a doze anos por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, há sete meses ele negocia um acordo de delação premiada. Em troca de redução de pena, compromete-se a contar detalhes de mais de uma dezena de crimes dos quais participou. Um dos capítulos da colaboração trata das relações financeiras entre Lula e o ditador líbio — e tem potencial para fulminar o partido e o próprio ex-presi­dente.

Em sua proposta de delação, Palocci conta que, em 2002, recebeu uma missão: Kadafi disponibilizara 1 milhão de dólares, o equivalente a 4 milhões de reais na época, para apoiar a campanha de Lula. Cabia a ele, homem de confiança do candidato e também responsável informal pelas finanças do partido, cuidar da “internalização” do dinheiro. Em outras palavras, o ex-­ministro foi incumbido de encontrar um jeito de colocar o dinheiro dentro do Brasil sem chamar a atenção das autoridades nem deixar rastros de sua origem. Nos relatos entregues aos investigadores, os chamados “anexos”, o ex-ministro afirma que cumpriu a missão e promete exibir comprovantes da operação. Palocci pretende revelar os detalhes da transação — quem deu a ordem, quem intermediou, como o dinheiro chegou ao Brasil e de que forma ele foi utilizado — caso o acordo de colaboração seja assinado. É uma acusação tão grave que, se Palocci conseguir provar o que promete contar, o PT pode perder o direito de existir como partido.

Delação – Palocci: preso há catorze meses, ele quer revelar crimes cometidos antes, durante e depois do governo Lula
Delação – Palocci: preso há catorze meses, ele quer revelar crimes cometidos antes, durante e depois do governo Lula (Rodolfo Buhrer/Reuters)

A legislação brasileira diz que nem partidos nem candidatos podem receber recursos de “procedência estrangeira” — seja um cidadão, uma empresa ou um governo. A punição é o cancelamento do registro do partido. Diz Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presi­dente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), falando sem conhecimento do caso específico: “É uma questão de soberania nacional. Quando o partido recebe recursos do exterior, essa soberania fica precarizada. Por isso é que o partido sofre a sanção mais gravosa, que é a perda do registro”.

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O PT, aliás, já é alvo de um pedido de cassação de registro por receber dinheiro do exterior. Em delação premiada, o ex-diretor da área Internacional da Petrobras Nestor Cerveró disse que, em 2005, a Sonangol, estatal petrolífera de Angola, fez uma oferta de blocos de petróleo. A Petrobras pagou 300 milhões de dólares para explorar os campos, e parte do dinheiro, o equivalente a 40 milhões de reais, teria retornado ao Brasil para financiar a campanha de Lula à reeleição. Diante dessa revelação, o PSDB pediu a cassação do registro do PT. O caso, em fase inicial, ainda tramita no TSE.

As revelações de Palocci podem levar à extinção do PT e inviabilizar a nova candidatura de Lula

Uma eventual punição ao PT pelo recebimento de dinheiro de Kadafi há quinze anos não tem como retroagir para mudar os desdobramentos de eleições passadas, mas pode provocar reviravoltas na eleição de 2018 — pois o crime de embolsar dinheiro de “procedência estrangeira” não tem prescrição definida. Especialistas ouvidos por VEJA ressaltam que, caso a operação seja comprovada, o registro do PT pode ser cassado. Um processo como esse, porém, poderia se estender por um longo período, porque demandaria produção de provas no exterior. Num primeiro cenário hipotético, se até meados de 2018 Palocci conseguir provar a interferência dos dólares líbios, a Justiça Eleitoral poderia concluir o processo em plena campanha. Isso significa que todos os petistas inscritos para concorrer em 2018 também teriam seu registro automaticamente anulado. “A eventual cassação de registro de um partido político a partir do sexto mês do ano da eleição inviabilizaria todas as candidaturas desse partido por falta de filiação partidária”, explica o ex-ministro do TSE Henrique Neves, falando em tese, sem conhecimento do caso em questão.

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Quadrilha – Odebrecht: obras de 1,4 bilhão de dólares na Líbia com a intermediação do ex-presidente
Quadrilha – Odebrecht: obras de 1,4 bilhão de dólares na Líbia com a intermediação do ex-presidente (Ismail Zitouny/Reuters)

O segundo cenário, na avaliação do ex-ministro, ocorreria se a cassação do registro do partido se desse após a eleição. Nessa situação, os candidatos eleitos não perderiam o mandato e poderiam migrar para outras legendas. Líder nas pesquisas (leia mais), o ex-­presidente não seria alcançado pela Justiça Eleitoral, mas não ficaria livre do fantasma de Kadafi. Dependendo do que Palocci revelar nos depoimentos, Lula pode responder a novos processos na Justiça comum, onde já foi condenado a nove anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro e é investigado em outros doze casos por corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico de influência e organização criminosa.

Na realidade, os problemas de Lula com a delação de Palocci vão além do milhão do ditador. Em outro trecho de sua proposta de delação, Palocci narra o que ele descreve como ações de Lula para favorecer a Odebrecht e outras empreiteiras do petrolão. Em seus dois mandatos, Lula esteve com Kadafi pelo menos quatro vezes. Em 2009, foi à Líbia, ocasião em que saudou o ditador como “meu amigo, meu irmão e líder”. Palocci pretende contar o que sabe sobre o resultado desses encontros.

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Parte do dinheiro que a Odebrecht deu a Lula era uma recompensa pela abertura do mercado da Líbia

A partir de 2007, empreiteiras do petrolão instalaram-se na Líbia para tocar obras de infraestrutura. Só a Odebrecht tinha contratos de mais de 1,4 bilhão de dólares. “A Líbia tem grande potencial de geração de novos contratos e de investimentos”, festejou Marcelo Odebrecht, depois de uma visita às obras da companhia em Trípoli, em 2009. Na época, a empreiteira empregava 5 000 trabalhadores, que atuavam na construção do Terceiro Anel Rodoviário e dos novos terminais de passageiros do aeroporto da capital líbia. O dinheiro que a Odebrecht acabou repassando a Lula, segundo Palocci, era, em parte, uma retribuição à ajuda do ex-presidente para abrir o mercado líbio à empreiteira.

De Angola – Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras: dinheiro ilegal do exterior na campanha de Lula em 2006
De Angola – Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras: dinheiro ilegal do exterior na campanha de Lula em 2006 (Pablo Jacob/Agência O Globo)
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Em setembro, durante depoimento ao juiz Sergio Moro, Palocci assombrou o petismo ao revelar que houve “um pacto de sangue” entre Lula e a Odebrecht. Segundo ele, pouco antes de deixar o governo, em 2010, Lula acertou com o empresário Emílio Odebrecht um pacote de aposentadoria, segundo o qual teria à sua disposição um fundo de 300 milhões de reais, receberia uma remuneração regular disfarçada em forma de palestras e teria agrados pontuais, como a reforma de seu sítio em Atibaia. Em setembro, VEJA publicou uma parte inédita do cardápio oferecido pelo ex-­ministro aos investigadores da Lava-­Jato. Nele, Palocci garante que Lula sabia dos esquemas ilegais e construiu um belo patrimônio pessoal com dinheiro de corrupção. O ex-presidente, segundo ele, orientava como o dinheiro desviado da Petrobras deveria ser usado pelo PT — e reservava um quinhão para si. O ex-ministro afirma que levava pessoalmente maços de 30 000, 40 000, 50 000 reais para o ex-presidente.

Logo depois dessas revelações, Palocci divulgou uma carta na qual solicitava seu desligamento do PT: “Sei dos erros e ilegalidades que cometi e assumo minhas responsabilidades. Mas não posso deixar de destacar o choque de ter visto Lula sucumbir ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo”, escreveu. Preso há catorze meses, Palocci aguarda o sinal verde dos procuradores da República para definir o seu futuro — e também o de Lula e do PT.

Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2017, edição nº 2560

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