De volta para o futuro
Com base na transcrição de trechos de cartas, discursos e artigos do inventor do telefone, VEJA imagina uma conversa com ele
O inventor escocês naturalizado americano Alexander Graham Bell quase nunca sai de sua casa em Beinn Bhreagh, na pacata província de Nova Escócia, no Canadá, país onde voltou a morar em 1885, após viver catorze anos nos Estados Unidos. Num canto da propriedade, um belo sítio, fica o laboratório em que ele passa a maior parte dos dias. Aos 70 anos, Graham Bell continua na ativa. E não por necessidade — o dinheiro deixou de ser preocupação para esse gênio extraordinário, filho e neto de professores de elocução, desde que a Western Union, a poderosa empresa americana de telégrafos fundada em 1851, reconheceu oficialmente que o telefone era uma criação sua. A decisão, anunciada em 1879, pôs fim a uma batalha jurídica que se arrastava havia anos e que quase o levou à falência. No início do século XX, a Bell Telephone Company, rebatizada de American Telephone and Telegraph (AT&T), ocupava a posição de maior empresa dos EUA, com ações negociadas a 1 000 dólares. Apesar disso, só nas últimas quatro décadas Graham Bell pediu a patente de outras trinta invenções — entre elas, a do gramofone e a do detector de metais. Ao mesmo tempo, lançou-se no campo da genética, tentando em vão produzir uma raça de ovelhas capaz de dar muitas crias de uma vez. Sua mais nova área de interesse é a aviação — em 1907, fundou a Associação de Experimento Aéreo, para difundir as pesquisas nesse campo. “A nação que tiver o controle do céu controlará o mundo”, diz o inventor. Por telefone — como não poderia ser mais adequado, nesse caso —, ele falou a VEJA.
(Deve-se ler a entrevista como se tivesse ocorrido em 1917, cinco anos antes de Alexander Graham Bell morrer, em decorrência de diabetes, em sua residência canadense.)
A batalha judicial pela patente do telefone foi uma das mais longas e caras da história. O fato de o professor americano Elisha Gray requerê-la apenas duas horas depois do senhor alimentou a polêmica sobre quem teria sido o autor da invenção. O que o senhor diria aos que alegam que sua vitória nos tribunais foi injusta? Foi uma corrida cabeça a cabeça entre mim e o senhor Gray para ver quem completaria primeiro o aparelho. Ele tinha a vantagem de ser um eletricista — entretanto, eu tinha motivos para acreditar que estava mais familiarizado com o fenômeno do som, já que dediquei minha vida ao estudo da acústica. Meu conhecimento de questões elétricas não foi adquirido de maneira metódica, mas retirado de livros que me chegaram às mãos e de experimentos que pude fazer por conta própria. Na exposição da Filadélfia, em 1876, ficou claro que o meu aparelho era superior.
O que realmente aconteceu naquele evento? Entrei em competição direta com Elisha Gray. Ele, por não ser cientista, teve de pedir ao professor Barker, da Universidade da Pensilvânia, que explicasse o dispositivo em seu lugar. Havia cerca de cinquenta pessoas no local, e eu estava entre elas. Gray tentou enviar duas mensagens (na verdade, o som de notas musicais) simultaneamente, sem sucesso.
O senhor disse certa vez que dom Pedro II — que o conheceu em Boston, onde viu de perto seu trabalho com crianças surdas-mudas — foi muito importante na divulgação do telefone. De que forma ele contribuiu para que sua criação fosse difundida? O imperador me reconheceu em meio à multidão (durante a Exposição Centenária da Filadélfia). Quando a exibição de Gray terminou, aproximou-se de mim e apertamos as mãos. Ele então foi ver meu aparelho — e ofereci-lhe um teste de transmissão de voz. Fui a um aposento distante e cantei ao telefone. Depois, articulei a pergunta “O senhor entende o que eu digo?”. O imperador escutou, surpreso, e disse: “Eu ouvi, eu ouvi!”. Foi um sucesso glorioso.
“Chegará o dia em que o homem, ao telefone, será capaz de enxergar a pessoa com quem está falando a distância”
Antes de cair no gosto popular, o telefone foi recebido com ceticismo. Em um memorando de 1876, a Western Union dizia que ele tinha “defeitos demais para ser levado a sério como meio de comunicação”. Um grupo de especialistas ingleses declarou que a invenção não seria de grande uso por lá, já que na ilha havia um bom número de garotos de recado. O senhor esperava tais reações? Quando criei um aparelho operado pela voz humana, senti que estava no limiar de uma grande descoberta. Acreditava que fosse a chave para coisas muito maiores, que um dia os fios de telefone seriam instalados nas residências como canos de água ou de gás, e amigos poderiam conversar uns com os outros sem sair de casa. Um dia toda cidade grande da América terá um telefone. Chegará o dia em que o homem, ao telefone, será capaz de enxergar a pessoa com quem está falando a distância.
Em 1878, o senhor fez uma demonstração do invento para a rainha Vitória, que encomendou dois telefones. Como foi isso? Após uma explicação sobre o funcionamento do aparelho, sua majestade pegou o telefone e conversou com sir Thomas e lady Biddulph, que estavam em um chalé (nas redondezas). A seguir, miss Kate Field foi ao piano e cantou Kathleen Mavourneen ao telefone.
Em um discurso aos formandos da Escola McKinley, o senhor alertou para a exploração abusiva de recursos naturais, como o carvão e o petróleo. Por que essa preocupação? Somos perdulários em matéria de combustível e estamos usando nosso capital sem pensar no futuro. O carvão e o petróleo existem em quantidade limitada. Podemos retirar o carvão de uma mina, no entanto não poderemos colocá-lo de volta nela. Podemos extrair petróleo de reservas subterrâneas, porém nunca conseguiremos enchê-las de novo. Em relação ao carvão e ao petróleo, o consumo anual tornou-se tão grandioso que estamos neste momento a pouca distância do fim dos estoques.
Há alguma fonte de energia alternativa para quando não existirem mais carvão nem petróleo? A energia hidráulica é limitada, ainda não aprendemos a utilizar a energia das marés, e a da madeira é inviável — leva-se ao menos 25 anos para cultivar árvores. Mas há outra fonte de combustível que pode resolver o problema do futuro: o álcool. Trata-se de um combustível limpo, eficiente e que pode ser manufaturado sem grandes custos. O metanol, por exemplo, é retirado da serragem, um dejeto de nossos moinhos. O etanol pode ser fabricado a partir do milho. Na verdade, a partir de qualquer matéria vegetal que passe por fermentação. Os resíduos de nossas fazendas e até mesmo o lixo de nossas cidades estão disponíveis para esse fim. Não precisamos temer a exaustão de nosso fornecimento atual de combustível se formos capazes de produzir uma colheita anual de etanol em qualquer medida desejada. Com o passar do tempo, o mundo dependerá cada vez mais do etanol.
“Não pode haver atrofia mental em quem continua a observar, a se lembrar do que observa e a buscar respostas para o eterno como e por que das coisas”
Alguns cientistas preveem que a poluição bloqueará os raios solares, causando um esfriamento do planeta daqui a algumas décadas. O senhor concorda com esse raciocínio? Apesar de perdermos parte do calor do sol devido ao ar poluído, acredito que a atmosfera reterá uma porção significativa do calor da Terra que é normalmente irradiado para o espaço. Estou mais inclinado a pensar que teremos algum tipo de efeito estufa.
A pedido do governo americano, o senhor começou a delinear uma política de aeronáutica militar. Qual a importância desse campo? A Força Aérea será um fator decisivo nas guerras futuras. Podemos concluir que nem o Exército nem a Marinha poderão defender os EUA de um ataque aéreo. Todo o poder da Marinha britânica não foi capaz de evitar que os zepelins atacassem Londres. (Em 1915, um dirigível alemão bombardeou a cidade.) Isso exige o acréscimo de uma terceira frente em nosso sistema de defesa, uma Força Aérea Nacional, distinta do Exército e da Marinha, mas capaz de cooperar com ambos e agir de forma independente. A nação que assegurar o controle do ar controlará o mundo.
O senhor afirma que os irmãos Wilbur e Orville Wright foram os inventores do avião. Há provas do pioneirismo deles? Os irmãos Wright realizaram voos bem-sucedidos nos dias 3 e 4 de outubro de 1905. Eles também se alternaram em voos sobre um campo de testes perto de Dayton, em Ohio, às vezes subindo a uma altura de 24 metros, outras deslizando a poucos metros do solo. Foram capazes de fazer um “8” no ar com sua máquina. Tiveram sucesso em permanecer no ar por 38 minutos, e só desceram porque o combustível acabou. A máquina não apenas foi mantida suspensa nesses testes como também carregou um homem e um motor de 12 a 15 cavalos de potência. Os Estados Unidos podem se orgulhar pelo fato de que essa questão foi resolvida por cidadãos americanos.
E quanto ao voo do brasileiro Alberto Santos Dumont com o 14 Bis, realizado em Paris no ano de 1906? Os esforços de Santos Dumont nos levaram ao dirigível (o brasileiro realizou o primeiro voo de um balão com propulsão própria em 1898), contudo suas experiências com balões desviaram a atenção da questão. As aves são os verdadeiros modelos para o voo. E, agora que o homem voltou a pensar em modelos com asas, vimos mais chances de sucesso. Hoje o mundo já tem a primeira máquina voadora — criação dos irmãos Wright. A máquina deles voou não apenas uma, mas várias vezes, e na presença de testemunhas. Portanto, não pode haver dúvidas de que é a primeira máquina voadora. Entretanto, vimos de fato que uma segunda máquina voadora foi construída pelo mesmo Santos Dumont, a quem o mundo já deve o primeiro voo de um dirigível.
Qual recado o senhor endereçaria às futuras gerações? Deixem, de vez em quando, o caminho trilhado e mergulhem na floresta. Sempre que fizerem isso podem ter certeza de que vão encontrar algo inédito. Será algo pequeno, mas não o ignorem. Sigam-no, explorem-no: uma descoberta levará à próxima e, antes que percebam, terão algo em que vale a pena pensar. Todas as grandes descobertas foram resultado do pensamento. Não pode haver atrofia mental em uma pessoa que continua a observar, a se lembrar do que observa e a buscar respostas para o eterno como e por que das coisas.
Fontes: acervos digitais da Biblioteca do Congresso dos EUA, da revista americana National Geographic e da instituição inglesa The Royal Archives
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591