Com o jogo ganho
O filho de Elis Regina e Ronaldo Bôscoli confirma a tese de seu pai: na música brasileira, Chico Buarque é, ao lado de poucos outros compositores, um deus
Há o homem comum, Francisco Buarque de Hollanda, amigo de seus amigos, boa-praça, inteligente, sofisticado senso de humor, talentoso, bom de bola, coerente (ah! esse crime), rico à própria custa, pago por nós, de forma voluntária, em cada show, filme, peça teatral, álbum, a cada audição pública. E há o homem coletivo — aquele que capta e molda o inconsciente humano e o devolve ao mundo sob a forma de obra de arte, acrescentando algo único. Quem escreveu Pedro Pedreiro aos 21 anos não veio ao mundo para passear, convenhamos. E por trabalhar no Brasil apenas com sua cabeça merece aplauso, lágrima e centavo. Quando esse cara — Chico Buarque, o homem coletivo — resolve escrever e tem um mínimo de inspiração… Meu Deus!
Aprendi com meu velho pai: “Chico é deus, meu filho” (calma, religiosos: é deus com letras minúsculas). Aí tem Caetano Veloso e depois outros onze (meu pai gostava de futebol. E do Chico também). Sobre as ideias de Chico, sempre mais bem expressas em suas músicas, normalmente deixo passar. Com todo o respeito, não presto atenção em entrevistas de artistas; costumam ser bobagens autorreferentes. Pouquíssimas acrescentam algo.
E o disco? Bem, Caravanas já é o melhor álbum brasileiro lançado neste ano. Bem gravado, bem tocado, bem arranjado e bem cantado. Um dos melhores de sua carreira. Não esperava por isso. Almanaque é melhor? Talvez. Prefiro crer no fato de que nós tenhamos piorado. Quem mais poderia escrever, ainda hoje, estes versos de Blues para Bia?
“Eu fiz este blues pra Bia
Mas Bia não vem me ouvir.
Não vou censurar a bela
É da natureza dela, viver solta
por aí…”
Só ele: o maior letrista vivo do Brasil (de novo, ao lado de Caetano Veloso). Vinicius morreu, Waly Salomão morreu, Noel Rosa morreu, Cartola morreu, Caymmi morreu, Bôscoli morreu, Tom morreu, Dolores Duran morreu, Newton Mendonça morreu, Sinhô morreu… Chico está vivo! Seus olhos verdes, quando brilham, encantam, seduzem, hipnotizam e nos deixam pasmados. Como pode, a esta altura, com o jogo ganho, ainda ter apetite e talento nesses graus?
Chico não existe. E o silêncio ouvido após suas canções acabarem ainda pertence a ele. Não gostar de suas letras é, para mim, um desvio qualquer. Quem não ouve Chico Buarque está condenado. Não ouvir sua obra é uma doença grave e invisível que com o tempo pode levar a terríveis consequências! Compõe músicas lindas — como se não bastasse escrever como ninguém.
Diante de tanto carinho por sua obra, fica uma única pergunta: Chico, qual o seu problema com a Elis?
* João Marcello Bôscoli é produtor musical
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2017, edição nº 2545