Cigarros mais viciantes
Empresas lançam produtos com sabor para alcançar o público jovem. Por quê? Porque é mais fácil viciar-se antes dos 20 anos
O Brasil é um caso de sucesso mundial no controle do tabagismo. O respeitado periódico científico inglês The Lancet reafirmou esse fato ao analisar a experiência de 195 países e territórios. O reconhecimento deve-se a um trabalho incansável, tanto da sociedade civil quanto de órgãos do governo, para implementar medidas como a proibição da publicidade de cigarros nos meios de comunicação de massa, o aumento de preço do produto, a incidência de impostos e a criação de ambientes livres de fumo.
Contudo, conforme o consumo de cigarros diminui, as empresas de tabaco lançam mão de outros recursos para atrair novos consumidores, especialmente entre os jovens. Isso tem sido feito principalmente pela oferta de cigarros com sabor, eletrônicos e até charutos. Afinal, as pesquisas mostram que 90% dos fumantes se tornam dependentes até os 19 anos. O resultado é que, enquanto as vendas totais de cigarros estão em declínio, as de cigarros com sabor aumentam. Um estudo da Euromonitor revelou que, entre 2010 e 2015, o consumo das versões com sabor multiplicou-se por dez em seis países latino-americanos (não há dados sobre o Brasil).
O problema é ainda mais grave porque, aqui, esses cigarros estão sendo vendidos a uma distância de até 250 metros das portas das escolas. Os sabores doces, de frutas e de mentol servem para suavizar o fumo e torná-lo mais palatável, justamente para atrair e conquistar novos fumantes. O objetivo é pôr uma nova geração de crianças em risco de viciar-se em nicotina. Ao crescerem, elas terão de enfrentar os sérios problemas de saúde advindos desse hábito.
Para piorar, estudos recentes concluíram que os cigarros da atualidade são ainda mais viciantes que os do passado. Nos últimos cinquenta anos, esses produtos passaram a apresentar maior teor de nicotina e tiveram amônia e açúcares incluídos em sua fórmula. Isso faz com que seja mais fácil tornar-se dependente de cigarro do que de drogas como cocaína e heroína. Por causa dessa mudança química, o fumante hoje tem mais risco de desenvolver câncer de pulmão do que tinha em 1964, mesmo consumindo menos maços.
O sucesso no controle do tabagismo poderia ser maior se a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proíbe cigarros com sabor, tivesse sido adotada em 2013. Naquela época, o tema foi discutido por toda a sociedade, com participação das companhias interessadas no mercado, em audiências e consultas públicas. Mas uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e apoiada pelas empresas de tabaco, impediu sua entrada em vigor.
Com essa liminar, ainda vigente, a indústria do tabaco pôde dar continuidade à sua estratégia de negócio, como evidenciam os dados da agência. Em 2013, apenas cinco marcas foram registradas pela Anvisa. No ano seguinte, graças à liminar do STF, 67 marcas com flavorizantes foram adicionadas. Em 2015, foram 87. Em 2016, oitenta. Os quatro anos de omissão do STF em relação ao tema foram um presente para a indústria do tabaco, mas provocaram um enorme desserviço à saúde pública.
Um relatório de associações médicas americanas identificou que sabores doces fazem com que os produtos de tabaco pareçam itens de uma loja de guloseimas ou um carrinho de sorvetes. Nos cigarros eletrônicos, os sabores usados correspondem a jujuba, algodão-doce, manteiga de amendoim e cookies, além de baunilha. Entre os charutos e as cigarrilhas, algumas opções eram de chocolate, frutas silvestres, melancia, limonada e cereja. O relatório citava até um inusitado unicorn puke, ou “vômito de unicórnio”, em inglês.
Esse mesmo relatório mostrou que cigarros eletrônicos estão disponíveis em mais de 7 700 sabores nos Estados Unidos. Todos os meses, centenas de novos gostos são adicionados. O número de sabores disponíveis para charutos mais que dobrou de 2008 a 2015, chegando a 250. As vendas de charutos com sabores aumentaram cerca de 50% desde 2008. E responderam por mais da metade (52,1%) do mercado de charutos dos Estados Unidos em 2015.
Naquele país, o uso de cigarros eletrônicos por estudantes de ensino médio subiu de 1,5%, em 2011, para 16%, em 2015, de acordo com a pesquisa da estatal National Youth Tobacco Survey, que analisa o uso de cigarros eletrônicos pelos jovens. Estudos recentes também mostram que garotos no ensino médio fumam mais charutos do que cigarros — 14% contra 11,8%, segundo a pesquisa Youth Risk Behavior Survey, de 2015.
O Brasil, lamentavelmente, segue o caminho já trilhado pelos americanos, com o mercado de cigarros com sabor em alta. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz, feito a partir de dados da Pesquisa Global de Tabaco na Juventude, da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2012, identificou que 30,4% dos meninos e 36,5% das meninas já tinham experimentado cigarro alguma vez. Desse grupo, 58,2% dos meninos e cerca de 53% das meninas informaram que preferiam cigarro com sabor.
Além da proibição dos sabores, uma medida que poderia ser efetiva para reduzir o tabagismo é a obrigação do uso de embalagens padronizadas nos maços, que não poderiam usar logotipos, design ou textos promocionais, mantendo-se apenas o nome da marca. Com a retirada desses atrativos, seria possível diminuir o apelo dos cigarros para o público jovem, aumentar a visibilidade e a eficácia das advertências sanitárias e impedir que as embalagens contivessem qualquer tipo de publicidade que pudesse confundir ou enganar o consumidor quanto aos perigos de fumar. Projetos de lei nesse sentido foram apresentados no Congresso Nacional, mas é preciso vontade política para aprová-los.
Se o Brasil adotasse embalagens padronizadas, seria possível evitar 86 000 mortes anualmente e economizar 20 milhões de reais na próxima década. Afinal, estima-se que 56,9 bilhões de reais sejam perdidos a cada ano com as despesas médicas e com a perda de produtividade provocadas pelo tabagismo. Nos próximos meses, o STF deve retomar as discussões sobre a proibição dos cigarros saborizados. A saúde de milhões de brasileiros depende da decisão
* Paula Johns, socióloga e diretora executiva da ONG ACT Promoção da Saúde
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2017, edição nº 2538