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As tábuas de Crivella

Sim, ele é prefeito de todos os cariocas. Mas tem obedecido, com ações, palavras e obras, a ditames que revelam uma ligação indisfarçável com os evangélicos

Por Thiago Prado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 ago 2017, 06h00 - Publicado em 19 ago 2017, 06h00

Na campanha, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), bispo licenciado da Igreja Universal e sobrinho do líder da agremiação religiosa, Edir Macedo, garantiu que, se eleito, faria rigorosa separação entre igreja e governo. Qualquer prefeito pode ter a fé que quiser, mas, seja qual for, ela precisa ficar na porta da prefeitura. No caso de Crivella, as coisas estão se misturando. Ele vem seguindo uma tábua de mandamentos sob medida para agradar ao rebanho evangélico, sobretudo aquelas ovelhas que estão com um pé dentro da política. A seguir, o decálogo do bispo-prefeito.

I. NOMEARÁS IRMÃOS
Crivella pôs em diversos postos municipais pessoas ligadas à igreja ou à Rede Record, a TV do tio Macedo. Em compromissos públicos, sempre tem ao lado o pastor Marcos Luciano, que o acompanhou no passado em missões na África e agora responde como assessor especial. Um segundo assessor é ex-executivo da Record. A Secretaria de Conservação está nas mãos de Rubens Teixeira, pastor da Assembleia de Deus que faz oração em eventos públicos e prega contra o uso de piercings e tatuagens. Pelo menos três superintendências acomodam evangélicos aliados de outras denominações. Um bispo da Universal comanda o Procon carioca, órgão vinculado ao gabinete do prefeito. Não há nada de ilegal nisso, mas é inadequado tornar a fé religiosa um critério para o preenchimento de cargos públicos. Só há, talvez, uma irregularidade: na chefia da Casa Civil, Crivella instalou o filho Marcelinho, mas o cheiro de nepotismo levou o caso ao Supremo Tribunal Federal, onde aguarda decisão, prevista para este mês. Enquanto isso, o herdeiro age como se secretário fosse e prepara a candidatura a deputado federal em 2018, pelo PRB do pai.

II. SEPARARÁS O JOIO DO TRIGO
A prefeitura realiza um censo religioso na Guarda Municipal por meio de um formulário com três perguntas: 1) A pessoa tem religião?; 2) Qual (católica, evangélica, espírita ou outra)?; e 3) É praticante? A participação é opcional. E, sim, a comandante da Guarda e autora da ideia, Tatiana Mendes, é evangélica. Ninguém entendeu por que é preciso apurar a religião de cada guarda municipal.

III. REDUZIRÁS FESTAS PAGÃS
Em nome da austeridade, o prefeito cortou a verba dos desfiles de escolas de samba do Carnaval 2018. Pode ser só austeridade mesmo, mas Crivella tem alergia a folguedos momescos, a maior atração turística do Rio. Ne­gou-se a participar da tradicional entrega das chaves da cidade ao Rei Momo, em fevereiro, e foi o primeiro prefeito desde 1984, ano da abertura do Sambódromo, a não pisar no palco da folia.

IV. APOIARÁS ARTE EVANGÉLICA
A Cidade das Artes foi cedida, de graça, a um festival de cinema evangélico marcado para novembro. A título de comparação: por um fim de semana de festa rave, neste mês, foram cobrados 25 000 reais.

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V. PROTEGERÁS OUVIDOS DA FÉ
A prefeitura desapropriou um clube de bailes funk na favela da Rocinha com o argumento de que ali construiria casas populares. O clube fica ao lado de um templo da Universal, e os fiéis reclamavam do barulho.

Dadivoso – Crivella e Garotinho: 300 000 reais para rádio do aliado evangélico
Dadivoso – Crivella e Garotinho: 300 000 reais para rádio do aliado evangélico (Antonio Luis/Futura Press/Estadão Conteúdo)

VI. IRRIGARÁS A MÍDIA PASTORA
O aliado (evangélico) Anthony Garotinho obteve cerca de 300 000 reais mensais em publicidade institucional para a Rádio Tupi, na qual tem um programa diário. A Rede Record, que o antecessor Eduardo Paes tirara da lista de publicidade por se julgar prejudicado na cobertura jornalística, voltou a ser agraciada com verbas, que a prefeitura está a um passo de aumentar.

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VII. VIAJARÁS EM PREGAÇÃO
Em viagem a Moscou, em maio, Crivella deu um jeitinho de visitar um templo da Universal. Um mês depois, participou em Brasília da homenagem prestada pelo Congresso aos quarenta anos de sua igreja. Diante do plenário lotado, tomou o microfone e soltou a voz em Perfume Universal, música de sua autoria que virou hino da igreja.

VIII. INFLARÁS O PARTIDO DA FÉ
Nos primeiros dias de gestão, Crivella quis mudar a logomarca da prefeitura para introduzir na palavra Rio um sutil número 10, do PRB, partido controlado pela Universal. O projeto foi parar na Justiça e acabou barrado.

IX. MINIMIZARÁS DIFERENÇAS
Crivella nomeou o presbiteriano Nelio Giorgini para a coordenadoria das políticas relativas à diversidade sexual. A pasta teve cargos e orçamento cortados. A prefeitura também vetou patrocínio à Parada Gay.

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X. HOMENAGEARÁS LÍDERES
Uma rua do Centro foi batizada com o nome de David Miranda, líder da igreja Deus É Amor. O autor do projeto foi o vereador e bispo João Mendes de Jesus. De onde? Do PRB, claro.

Consultada por VEJA, a assessoria do prefeito rebateu um a um os dez mandamentos da gestão de Crivella, alegando a herança maldita de um cofre vazio, o currículo impecável dos funcionários evangélicos e a preservação da vida privada. Ninguém exige que um prefeito administre contra a sua religião — seja ela evangélica, católica ou umbandista —, mas a confusão fere o caráter laico do Estado brasileiro. Enquanto governa com esse descuido, Crivella patina na impopularidade. Segundo pesquisa inédita do instituto GPP, ele conta com só 18% de bom e ótimo, menos da metade do que detinha Paes no mesmo período e do que exibe João Doria, prefeito de São Paulo.

Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544

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