Após a farra, a ressaca
Nenhum brasileiro foi tão longe no mundo dos negócios quanto os criadores da maior cervejaria do planeta. Mas há contratempos para manter a expansão
Os meses de altas temperaturas abrem a melhor temporada para a venda de cervejas nos Estados Unidos. No verão deste ano e do ano passado, a Budweiser decidiu substituir o nome da marca no rótulo por America. A ideia da campanha era usar o patriotismo para atrair os consumidores mais jovens. Mas as reações do público não vieram como se esperava. Mensagens no Twitter destacavam o fato de que a Budweiser, na verdade, pertencia à AB InBev, uma empresa sediada na Bélgica e controlada pelo fundo 3G, dos brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira. “A Budweiser é tão americana quanto a licença-maternidade remunerada”, dizia um artigo no jornal The Washington Post, fazendo piada quanto ao fato de o benefício inexistir nas leis americanas.
Injustiças à parte (afinal, independentemente de seu controlador, a marca permanece tão americana quanto os jeans Levi’s), a estratégia da troca de rótulo e tantas outras campanhas feitas pela Budweiser nos últimos anos buscaram reverter a queda nas vendas no mercado local. Apesar de estar em alta em outros países, como o Brasil, a marca vendeu 1,7 bilhão de litros de cerveja nos Estados Unidos em 2016, o que representa menos de um terço do volume distribuído no fim dos anos 1980, época em que as latas e garrafas de cerveja vermelhas eram as queridinhas nacionais. A Bud Light, outra marca da companhia, permanece a líder absoluta entre os consumidores americanos. Mas a empresa comandada pelo brasileiro Carlos Brito sente o impacto da mudança de hábito do público mais jovem, grupo no qual está em ascensão o consumo de vinho e cervejas artesanais. Os millennials já são responsáveis por quase metade do consumo de vinho nos Estados Unidos. Os milhares de rótulos artesanais surgidos no país nos últimos anos, como a Samuel Adams, de Boston, já abocanham um quinto das vendas.
Os percalços para preservar seu domínio no mercado americano são um sinal de que a vida dos brasileiros criadores da AmBev, reunidos atualmente no fundo de investimentos 3G e sob a liderança de Jorge Paulo Lemann, não será fácil. Embora o faturamento global da AB InBev esteja crescendo, o volume de cerveja distribuído está em queda. E o maior responsável é o mercado americano, cujas vendas em litros encolheram 4% nos nove primeiros meses de 2017. Embora os administradores brasileiros tenham feito fama internacional pela sua capacidade de reduzir custos operacionais e aumentar a rentabilidade dos negócios, essa habilidade não assegura necessariamente que as empresas continuem em alta, depois de eliminadas as gorduras. “Em dois ou três anos, esse processo de aumento da produtividade chega ao limite e depois é necessário recorrer a uma alternativa de mercado, que pode ser a aquisição de novos concorrentes ou a inovação na estrutura já existente”, explica Oscar Malvessi, especialista em fusões e aquisições da Fundação Getulio Vargas. A AB InBev sempre andou pelo primeiro caminho. Ela é uma espécie de Frankenstein do setor de cervejas, formada em sucessivas aquisições de grandes empresas. No meio desse longo caminho, que começou com a aquisição da Brahma no Brasil e cujo último capítulo foi o da compra da britânica SABMiller por mais de 100 bilhões de dólares, o gigante tropeça agora em seu próprio gigantismo. Ficou difícil crescer. Muitas tentativas de aquisição acabam esbarrando nas restrições de autoridades reguladoras.
Obstáculos semelhantes aos da AB InBev são enfrentados pela Kraft Heinz, também controlada pelo 3G. É a terceira maior empresa alimentícia dos Estados Unidos e a quinta do mundo. Ainda assim, ela tenta lidar com a mudança de comportamento dos consumidores, que buscam produtos menos industrializados. Lançou linhas orgânicas, mas o público, especialmente os jovens, não parece convencido. As vendas estão praticamente estagnadas e, apesar de o 3G prometer cortar 1,5 bilhão de dólares em custos, as ações da empresa caíram quase 10% desde o início do ano. Parte da queda pode ser debitada à tentativa frustrada de compra da Unilever. Em fevereiro, os brasileiros do 3G ofereceram 143 bilhões de dólares para unir a Kraft Heinz à empresa anglo-holandesa de bens de consumo. A resposta foi um grande e político “não”, com direito a consulta à primeira-ministra, Theresa May. A saída do Reino Unido da União Europeia causou uma desvalorização da libra e muitas empresas britânicas foram abocanhadas nesse período. Os brasileiros tentaram se aproveitar também, mas não deu certo. Tivesse sido bem-sucedida, a operação colocaria a Kraft-Heinz-Unilever em posição comparável à da Nestlé, a número 1 do setor. Além do fator político, pesou a fama do 3G de cortar custos e empregos. O medo do governo britânico era que a estrutura da Unilever, incluindo a sede, fosse igualmente transferida para os Estados Unidos, o que representaria também menos impostos. O espírito nacionalista no mundo dos negócios ficou adormecido durante a crise econômica mundial, mas parece ressurgir com a recuperação da Europa.
Analistas acreditam que o 3G pode fazer uma segunda proposta pela Unilever, desta vez oferecendo mais de 200 bilhões de dólares. É possível que os brasileiros consigam atrair os acionistas da empresa com promessas sedutoras de rentabilidade e que, assim, tenham ajuda para dobrar a resistência do governo local. Outra possibilidade é que partam para outro negócio. A PepsiCo é um possível alvo, e os rumores dão conta de que o megainvestidor americano Warren Buffett, sócio do 3G na Kraft Heinz, pode ajudar na operação. Não seria uma surpresa também se eles tentassem comprar a Mondeléz ou a General Mills, concorrentes diretas da Kraft Heinz. O problema é que as ações dessas empresas estão valorizadas — justamente pelos boatos de possível compra pelo 3G.
Paradoxalmente, se quiserem de fato adquirir as rivais, os brasileiros terão de desembolsar mais recursos. Os juros baixos, que nos últimos anos ajudaram o 3G a conseguir dinheiro a custo menor, também tendem a subir gradualmente na Europa e nos Estados Unidos, mas ainda há muita liquidez no mercado. O grande obstáculo para qualquer grande fusão será obter o aval de autoridades concorrenciais. É difícil saber a qual magia os investidores brasileiros mais bem-sucedidos da história vão recorrer. É certo que não será fácil renovar os truques, mas, se eles forem capazes de lapidar empresas de proporções gigantescas, quem se atreve a duvidar?
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558