A virada liberal
Depois de aprovarem o casamento entre pessoas do mesmo sexo e escolherem um primeiro-ministro gay, os irlandeses votam pelo direito de abortar
Num intervalo de 35 anos, a Irlanda deu uma espetacular guinada em um dos temas que mais acendem paixões, em qualquer lugar do mundo: o direito das mulheres ao aborto. Em 1983, 67% dos irlandeses se manifestaram por incluir uma emenda na Constituição que garantia ao feto os mesmos direitos da mãe. A Igreja Católica comemorou. Na prática, a decisão inviabilizava o aborto mesmo em casos de malformação, incesto, estupro ou risco materno. No último 25 de maio, uma porcentagem parecida, 66%, tomou a decisão oposta: foi aprovada outra emenda, que anula a proibição anterior. O resultado ficou pelo menos 10 pontos porcentuais acima do que indicavam as pesquisas.
A surpresa nas urnas é sintoma de uma mudança ruidosa da conservadora sociedade irlandesa, majoritariamente católica, que agora passou a ostentar a fama de ser uma das mais liberais do mundo. “Foi um dia histórico. Em quase todas as partes do país, homens e mulheres, de quase todas as idades e todas as classes sociais, votaram por emendar a nossa Constituição”, disse o primeiro-ministro Leo Varadkar, abertamente gay, filho de um imigrante indiano e que se envolveu diretamente na campanha. “Agora temos uma Constituição moderna para um povo moderno.” Entre os fatores que contribuíram para a reviravolta está o desgaste da Igreja Católica com os escândalos de pedofilia. Em 2009, duas comissões apoiadas pelo governo mostraram que dezenas de padres haviam molestado crianças durante décadas, sem ser repreendidos pela cúpula clerical. Em 1975, o primaz da Irlanda, cardeal Sean Brady, recebeu denúncias de jovens, mas obteve deles um voto de silêncio e nada informou à polícia, protegendo o padre Brendam Smyth. O clérigo, então, seguiu praticando seus crimes com dezenas de crianças, até 1994, quando foi preso. No cômputo final, mais de 100 padres atacaram 432 vítimas. Muitos dos jovens que foram votar na semana passada atingiram a maturidade sexual na época das revelações, e com isso desenvolveram uma visão cética da hierarquia católica. Hoje, cerca de 17% dos cidadãos com idade entre 20 e 30 anos declaram não ter religião, uma surpresa em um país onde mais de 90% da população se dizia católica nos anos 1990. “A Igreja não tem o mesmo controle sobre os cidadãos que tinha há uma geração. A sucessão de abusos sexuais minou a autoridade moral e a influência pública da instituição”, diz a socióloga americana Deana Rohlinger, que estuda políticas sobre aborto na Universidade Estadual da Flórida.
O direito ao aborto ganhou apoio principalmente depois que a população foi obrigada a viver sob a lei proibitiva de 1983. Todos os anos, mais de 3 000 irlandesas passaram a ir à Inglaterra ou à Holanda para abortar. Em 2012, houve comoção com a morte da dentista Savita Halappanavar, de 31 anos. Grávida de dezessete semanas, a indiana teve de correr para o hospital na cidade irlandesa de Galway por causa de um sangramento. O feto não sobreviveria, mas os médicos se recusaram a fazer o aborto. “A Irlanda é um país católico”, disse um deles. Savita teve uma infecção generalizada e não resistiu.
Além de mais preocupada com os direitos dos cidadãos, a sociedade que votou pela possibilidade do aborto é mais rica que aquela que votou contra, há 35 anos. Desde a década de 90, os sucessivos governos da Irlanda reduziram os impostos para atrair talentos e investimentos. O crescimento econômico médio anual de 8% nos anos 1990 e 2000 levou o país a ser conhecido como Tigre Celta. De uma das nações mais pobres da Europa, a Irlanda passou a ter um dos melhores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). No ano passado, o PIB cresceu quase 8%. Várias das principais companhias de tecnologia mundiais, entre elas Amazon, Google e Facebook, escolheram a capital, Dublin, para sede da Europa. Irlandeses que tinham ido trabalhar em outros países da Europa voltaram para casa. “O aumento da renda ampliou as opções de lazer e reduziu o tempo para atividades ligadas à Igreja”, diz a socióloga Michele Dillon, da Universidade de New Hampshire, nos EUA, especialista em história das religiões. “Além disso, muitos irlandeses que retornaram tinham ideias mais seculares.”
A Irlanda ainda é um dos países com a maior proporção de católicos da Europa, mas declarar-se seguidor de uma religião já não significa acatar seus princípios. Em 1993, a homossexualidade deixou de ser crime. O divórcio foi legalizado em 1996. Há três anos, uma lei passou a autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo após 62% da população se pronunciar a favor em uma consulta popular. No alto do panteão católico da Irlanda continua a figura de São Patrício, que levou o cristianismo ao país, no século V. Contudo, para os irlandeses e turistas, Saint Patrick já é mais conhecido como o nome da festa em que todos se vestem de verde e bebem à vontade.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585