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A rifa da fama

Quem é o paranaense que fatura milhões vendendo a crianças e adolescentes o sonho — quase sempre frustrado — de brilhar na TV e, claro, no YouTube

Por João Batista Jr.
Atualizado em 4 jun 2024, 17h30 - Publicado em 4 Maio 2018, 06h00

Quando Marcelo Germano, um paranaense de 45 anos e com muitos cálculos na cabeça, sobe ao palco do seu evento, os 3 000 adolescentes e crianças da plateia o recebem aos gritos de “Tio Marcelo, Tio Marcelo, Tio Marcelo”. Ele é o vendedor de um sonho. A plateia é, inteirinha, candidata a realizar o sonho da fama. Fama como modelo, youtuber, bailarino, ator, cantor, qualquer coisa que dê aos jovens o status de celebridade midiática. E Marcelo Germano sobe ao palco ao lado do seu principal — na verdade, único relevante — trunfo em mais de duas décadas como caçador de futuros famosos: Larissa Manoela, o talento mirim, hoje com 17 anos, que foi descoberto por “Tio Marcelo” e virou estrela do SBT. Todos ali querem ser uma versão de Larissa Manoela. E Tio Marcelo, nas palavras dele mesmo, é o sujeito capaz de “olhar atrás dos montes” e “despertar o melhor em cada aspirante ao sucesso”.

A rifa da fama
RISOS SINCEROS – Germano, no palco do evento: 7,5 milhões (Jefferson Coppola/VEJA)

Há duas semanas, VEJA acompanhou o evento batizado de “O encontro”, num centro de convenções de 11 000 metros quadrados em Curitiba. Ali, os candidatos à fama fazem testes, recebem dicas e frequentam aulas de passarela, de voz, de atuação, ministradas por 450 profissionais. A maioria tem entre 9 e 13 anos e está acompanhada das mães, e cerca de 70% das crianças são meninas. Mas há também pais, meninos e até criancinhas de 4 anos. Para chegarem a “O encontro”, eles foram pré-selecionados, mas sem muito rigor. A nota de corte é baixíssima. A pré-seleção aconteceu em mais de 150 cidades, em todas as regiões do país, ao longo do ano. Por essa primeira etapa em sua cidade, os pais dos candidatos à fama pagaram 250 reais a Tio Marcelo. Depois, para terem acesso ao evento, pagaram mais 2 500 reais, fora os custos de transporte, hospedagem e alimentação. Só aí, Tio Marcelo faturou 7,5 milhões de reais.

Tio Marcelo achou um modo engenhoso para financiar os pais que não têm os 2 500 reais: eles devem tomar emprestado o dinheiro e depositar o total na conta de sua empresa. Em troca, recebem para vender a rifa de um carro — no caso, um Renault Sandero zero-quilômetro, que custa 45 000 reais. A rifa tem 150 números, e cada um deve ser oferecido por 30 reais. Quem vende o carnê inteiro recolhe 4 500 reais — paga a conta do evento e ainda embolsa o resto. Quem não vende se complica. A maioria não consegue cumprir a meta. Outro meio de financiamento proposto por Tio Marcelo é a doação de uma “carta de patrocínio” aos pais, que poderão oferecê-la a comerciantes de sua cidade ao preço que quiserem. Os que compram ganham o direito de exibir seu negócio nas telas dos vários televisores espalhados pelo centro de convenções em Curitiba.

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“TIO MARCELO” - Crianças à frente do palco: gritos por uma selfie (Jefferson Coppola/VEJA)
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“Estou aqui porque consegui passar para a frente todas as rifas”, diz a paulista Viviane Martins, mãe de Mell, de 11 anos. Sua filha sonha em ser cantora, tem experiência em coral de igreja evangélica e já fez cursos para burilar a voz e o ritmo. No evento de Tio Marcelo, Mell participou de workshops de passarela e interpretação. No teste vocal, não foi aprovada, e por isso deixou de ser avaliada por uma banca de examinadores que tem entre seus integrantes Charles Möeller, um dos maiores produtores de musicais do país. Viviane investiu 5 000 reais para ir a Curitiba. Os pais mandaram fazer camiseta, agenda e capinha de celular com o rosto da filha. “O sonho dela de ser cantora virou o meu também”, diz a mãe.

O desejo de ser famoso quase sempre é alimentado pelos pais. “Já vejo minha filha brilhando na Broadway”, diz o administrador Jarme Santana Franchim. Ele é pai de Nicole, de 7 anos. Desde os 2 ela está no casting de uma agência. A garota tem uma rotina que inclui aulas de canto, hip-­hop e balé. Emplaca com frequência aparições no Programa Raul Gil, no SBT, pelas quais embolsa cachê de 200 reais por diária. Em um dos dias do evento em Curitiba, pai e filha tiveram acesso ao espaço vip, área montada para que empresários e artistas possam almoçar longe da multidão. “Ficamos com os artistas conhecidos, fizemos fotos. Isso traz visibilidade em rede social. É um plus”, diz o pai.

O perfil dos participantes era variado. Em um concurso para atores de musicais, havia desde aspirantes com voz fraca até Joyce Mendes, de 14 anos, semifinalista do reality The Voice Kids de 2017. Na seleção de atores, as crianças precisavam estar com o texto decorado e mostrar desenvoltura diante de representantes de agências. Os aprovados receberão e-mails para ir ao escritório dos representantes, onde taxas variadas serão cobradas para entrar no casting.

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LUZ, CÂMERA, AÇÃO – Garotinha na sala de testes de atuação (Jefferson Coppola/VEJA)

Tio Marcelo quer ser conhecido como o criador de um polo de educação. “Eu me preocupo com os pais, muitos projetam o sonho de ser famoso na criança”, arrisca. O evento de Curitiba ofereceu 650 bolsas de estudo de teatro em escolas variadas, cinquenta bolsas de inglês e outras cinquenta de uma consultoria por Skype e WhatsApp para aspirantes a youtuber. O garoto Henzo Mascarenhas, de 5 anos, foi um dos selecionados para ser um futuro youtuber. Ele arrancou risadas da plateia e dos jurados quando apresentou seu vídeo com uma “denúncia”: não aguenta mais ganhar presentes “made in Paraguay”. Seus pais ficaram emocionados. Eles conseguiram arrecadar 6 000 reais para ir ao evento. “A patroa da minha mãe, que trabalha como doméstica, nos ajudou muito”, diz o pai, Thiago Mascarenhas, desempregado há um ano. As crianças que não ganham nada choram. Seus responsáveis, idem.

O fabricante de sonhos nasceu de um relacionamento de uma adolescente (sua mãe, Tânia, tinha 16 anos) com o ator Jayme Renato, no interior do Paraná. O pai era ausente e rodava o país dando curso de manequim e modelo. Chegava a ficar mais de quatro anos sem ver o filho. Também trabalhou como figurante do humorístico Planeta dos Homens, sucesso na TV Globo entre 1976 e 1982. “Sem perceber, segui o mundo da fama para me aproximar dele”, diz o filho. Ele recorda que, aos 5 anos, em um desfile infantil na cidade gaúcha de Caxias do Sul, caiu da passarela e, de tanta vergonha, urinou nas calças. Tio Marcelo fez de tudo na vida, de bicos como office-­boy a vendedor de tratores, mas só começou a organizar desfiles em 1996. Depois, passou a promover concursos de cantores e atores — e conheceu Larissa Manoela. “Eu a ajudava a pagar a condução para ir fazer os testes para comerciais em São Paulo”, lembra.

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SONHO COLETIVO – Mães aglomeram-se para buscar os filhos depois dos testes (Jefferson Coppola/VEJA)

Larissa explodiu como estrela mirim do SBT em 2012 — e, na cola desse sucesso, Tio Marcelo viu crescer seus eventos para aspirantes à fama. Se tinha ganhado na loteria uma vez, poderia ganhar de novo. Bem-sucedido, passou a ser acompanhado por um coach particular, que o levava ao bom caminho, evitando constrangimentos. “Eu era impulsivo, não escutava as pessoas”, lembra. Casado pela segunda vez, pai de três filhos e faturando 9 milhões de reais anuais com a venda da esperança da fama às crianças, Tio Marcelo diz que é “uma pessoa que mostra aos pais qual o melhor caminho para o filho chegar lá”. Para isso, dispara uma metralhadora de clichês: “controlar a ansiedade”, “olhar 360 graus”, “não comparar seu filho com outras crianças” e “ficar zen”. Seu negócio, segundo ele, não dá lucro, mas também não tem prejuízo. “Empato, não tenho lucro”, afirma. “Não gosto da energia do dinheiro.”

“Os pais sabem o que estão fazendo, e o fazem por livre vontade, mas sortear a rifa de um carro me parece algo mais ligado ao benefício próprio do que à descoberta de uma modelo”, diz Eli Hadid, dono da Mega Model, agência responsável pela revelação de nomes como Luana Piovani e Fernanda Lima. “Uma pessoa que aceita uma menina de 1,60 metro para uma seleção de passarela está sendo picareta, pois sabe que ela não terá chances na carreira”, afirma Anderson Baumgartner, proprietário da Way Model, que representa Carol Trentini, Alessandra Ambrosio e Marlon Teixeira.

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Em 2011, na ânsia de olhar “além dos montes”, Tio Marcelo tentou escalar a montanha do mercado de futebol. Programou um evento em Campo Mourão, no interior do Paraná, para apresentar mais de 300 aspirantes a jogador a clubes interessados. Uma denúncia resultou na prisão de três funcionários sob a suspeita de iludirem os garotos e cobrarem dinheiro deles, dando garantias falsas de que entrariam para times profissionais. Tio Marcelo foi investigado e inocentado das acusações. Mas houve sequelas. “Acumulei 1 milhão de reais em dívidas por não saber que o futebol é uma máfia.”

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

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