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A pílula inteligente

Aval para o primeiro remédio com sensor que rastreia informações dentro do paciente representa um grande avanço na medicina, mas levanta questões éticas

Por Thaís Botelho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 19h08 - Publicado em 17 nov 2017, 06h00

A era da pílula digital começou. Na segunda-feira 13, a agência reguladora de remédios dos Estados Unidos, a FDA, aprovou o uso de um comprimido que leva embutido um sensor capaz de informar aos médicos se e quando o paciente tomou o medicamento. O chip tem o tamanho de um grão de areia. É feito de magnésio, cobre e silício, minerais comumente encontrados nos alimentos. Ele começa a funcionar entre trinta minutos e duas horas após a ingestão e, depois disso, é naturalmente absorvido pelo organismo, sem provocar efeito tóxico algum.

Desenvolvida pela Proteus Digital Health, empresa americana especializada em produtos tecnológicos para a área de saúde, em parceria com o laboratório japonês Otsuka, a novidade com ares de ficção científica é a versão moderna de um dos antipsicóticos mais consumidos do mundo, o aripiprazol (cujo nome comercial é Abilify), indicado para esquizofrenia, mas também usado nos casos de depressão severa e transtorno bipolar.

O mecanismo do Abilify MyCite, eis o nome do “robozinho”, é ao mesmo tempo extraordinariamente simples e espetacularmente engenhoso (veja a ilustração na pág. ao lado). Sua grande vantagem é permitir ao médico controlar os horários exatos em que o remédio foi tomado e a dose administrada. Na medicina, e em especial na psiquiatria, o controle rigoroso da ingestão dos medicamentos é fundamental, sobretudo no caso de pacientes muitas vezes arredios. O portador de esquizofrenia é refratário a tratamentos e tem dificuldade extrema para manter a terapia durante longo tempo. Dos 21 milhões de portadores da doença no mundo (no Brasil são 2 milhões), apenas três em cada dez aderem aos tratamentos. Isso ocorre pelo conjunto de sintomas característicos da condição — alucinações, surtos de desconfiança ou ideia fixa de não apresentar a patologia. O paciente pode, portanto, estar certo de ter tomado a medicação, sem tê-lo feito. Ou, então, achar que não precisa dela. A postura já seria danosa em qualquer tipo de afecção. Mas, no caso de doenças psiquiátricas como a esquizofrenia, o risco da não adesão tende a ampliar o descontrole dos sintomas. O Abilify convencional foi um dos primeiros antipsicóticos de uso contínuo e com reduzidos efeitos colaterais. Ele age na dopamina, um neurotransmissor que tem ação desregulada no portador de doenças psiquiátricas. Sua principal ação é melhorar os sintomas maníaco-depressivos.

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(Arte/VEJA)

Afinal, até onde vai o direito de alguém, mesmo um médico ou um familiar, de ter acesso a informações tão íntimas
de modo tão invasivo?

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A pílula digital é um extraordinário passo de um movimento que, nos últimos anos, pôs a medicina em outro patamar, na antessala de um novíssimo capítulo. Vive-se no mundo do big data, termo que designa a capacidade tecnológica de capturar, organizar e interpretar automaticamente uma enormidade de dados, num dos mais interessantes saltos permitidos pela internet. Ganham-se tempo e dinheiro com a vastidão de informações coletadas em bancos de dados de hospitais e centros de pesquisa a partir das condições de saúde de milhões de pessoas. Estima-se que, se os médicos tivessem acesso às informações de todos os doentes do planeta, seria possível reduzir em 20% a mortalidade mundial. Uma das mais recentes e impactantes conquistas ocorreu com o programa Watson Health, lançado em 2015 pela IBM. O sistema de inteligência artificial, alimentado pelos servidores da empresa americana, já agrupa grande parte dos dados medicinais do planeta para facilitar o trabalho dos profissionais e acelerar as pesquisas (leia mais). Não há risco de fake news, como acontece em outros setores da informação compartilhada. Em Genebra, há outro polo espetacular, o centro de pesquisa Campus Biotech, referência em biotecnologia, que usa o big data para levantamentos na área de epidemiologia e saúde.

Researchers in a laboratory are seen during a press visit at Campus Biotech on November 4, 2014 in Geneva. A few meters from the international institutions in Geneva, a new research center called Campus Biotech is currently drawing the contours of tomorrow's medicine, research-based and "big data". Based in a huge complex of metal and glass, which housed two years ago the now closed Swiss pharma group headquarters Merck-Serono, the campus has more than 230 researchers currently and is expected to accommodate 600 soon. Credito: FABRICE COFFRINI/AFP PHOTO
Avanço – O centro de pesquisa suíço Campus Biotech é referência no big data (Fabrice Coffrini/AFP)

Remédios como a pílula inteligente podem servir de ferramenta de controle para evitar um dos maiores nós da medicina atual: o desperdício de medicamentos. A cada ano, no sistema de saúde dos Estados Unidos, jogam-se fora cerca de 750 bilhões de dólares (o equivalente a 2,4 trilhões de reais) com receitas que não são seguidas fielmente, fraudes, serviços desnecessários, entre outros. No Brasil, esse dado nunca foi levantado. O Abilify MyCite surge, portanto, também como atalho econômico. Ele foi o primeiro de sua família a ter o aval da FDA, mas existem outros na fila. Atualmente, há uma dezena de sensores semelhantes acoplados a dispositivos sendo desenvolvidos nos Estados Unidos e na Europa. As doenças avaliadas são dos mais variados tipos, como hepatite, problemas cardíacos, derrame e diabetes. A tecnologia da pílula inteligente poderá também ser usada no monitoramento de pacientes que abusam de remédios, como analgésicos e ansiolíticos. O campo é amplo.

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E, como ocorreu, ocorre e ocorrerá com todas as revoluções tecnológicas, ao anúncio das maravilhas apresentadas, abre-se imensa discussão ética. A decisão de usar um recurso de rastreamento interno do corpo humano envolve questões morais delicadas. Evidentemente, o uso do remédio com o chip espião só acontecerá com o consentimento do paciente. Ainda assim, apesar dessa certeza, uma pergunta se impõe: até onde vai o direito de alguém, mesmo um médico ou um familiar, de ter acesso a informações tão íntimas de modo tão invasivo? Ressaltem-se, ainda, a fragilidade e a vulnerabilidade de uma pessoa doente, ansiosa por cura. São dilemas de cunho ético inescapáveis na era da internet, da informação democratizada, da facilidade de acesso a quase tudo e a quase todos.

Making CAR T cells. The name of the cell processing specialist that was working in the bio-safety cabinet is Dipti Sahoo. Photo by Sam Ogden Credito: Cortesia Dana-Farber Cancer Institute
Oncologia – O aval da FDA para o Car-T, droga individual para o câncer, foi o primeiro salto na farmacologia neste ano (Foto: Dana-Farber Cancer Institute/Divulgação)

Instado sobre a possibilidade de o comprimido inteligente ferir as liberdades individuais, no caso de utilização indevida das informações médicas, o diretor executivo do laboratório Otsuka, Kabir Nath, vai direto ao ponto: “Acima de tudo, deve-se valorizar a relação com o médico”.

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A pílula com o sensor terá venda controlada. Já se estuda a possibilidade de torná-la compulsória, em casos específicos, desde que o paciente e corpos médicos concordem — e nessas situações haveria determinação judicial. Por enquanto, será vetada para crianças e idosos, uma vez que são pacientes mais vulneráveis. Chegará às prateleiras somente em meados de 2018. Não se sabe quando será lançada no Brasil. Há uma certeza: ela representa, além do sucesso científico, uma mudança de comportamento. Um grãozinho de tecnologia afeito a transformar o modo como lidamos com a saúde. “Abre um imenso caminho para desvendarmos doenças dramáticas como a esquizofrenia”, diz Acioly Lacerda, professor do departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo e associado da Universidade de Pittsburgh, nos EUA. Afinal, o chip fornecerá, com extrema precisão, informações às quais o médico terá acesso e que poderão ajudá-lo a chegar a conclusões inovadoras.

O anúncio da FDA celebra um ano luminoso para a evolução da medicina. A pílula inteligente é o segundo grande avanço deste ano na farmacologia. Em setembro, a FDA aprovou o Car-T, uma revolução na oncologia, a primeira terapia celular totalmente individual. São tempos de mudança.

Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557

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