A pílula inteligente
Aval para o primeiro remédio com sensor que rastreia informações dentro do paciente representa um grande avanço na medicina, mas levanta questões éticas
A era da pílula digital começou. Na segunda-feira 13, a agência reguladora de remédios dos Estados Unidos, a FDA, aprovou o uso de um comprimido que leva embutido um sensor capaz de informar aos médicos se e quando o paciente tomou o medicamento. O chip tem o tamanho de um grão de areia. É feito de magnésio, cobre e silício, minerais comumente encontrados nos alimentos. Ele começa a funcionar entre trinta minutos e duas horas após a ingestão e, depois disso, é naturalmente absorvido pelo organismo, sem provocar efeito tóxico algum.
Desenvolvida pela Proteus Digital Health, empresa americana especializada em produtos tecnológicos para a área de saúde, em parceria com o laboratório japonês Otsuka, a novidade com ares de ficção científica é a versão moderna de um dos antipsicóticos mais consumidos do mundo, o aripiprazol (cujo nome comercial é Abilify), indicado para esquizofrenia, mas também usado nos casos de depressão severa e transtorno bipolar.
O mecanismo do Abilify MyCite, eis o nome do “robozinho”, é ao mesmo tempo extraordinariamente simples e espetacularmente engenhoso (veja a ilustração na pág. ao lado). Sua grande vantagem é permitir ao médico controlar os horários exatos em que o remédio foi tomado e a dose administrada. Na medicina, e em especial na psiquiatria, o controle rigoroso da ingestão dos medicamentos é fundamental, sobretudo no caso de pacientes muitas vezes arredios. O portador de esquizofrenia é refratário a tratamentos e tem dificuldade extrema para manter a terapia durante longo tempo. Dos 21 milhões de portadores da doença no mundo (no Brasil são 2 milhões), apenas três em cada dez aderem aos tratamentos. Isso ocorre pelo conjunto de sintomas característicos da condição — alucinações, surtos de desconfiança ou ideia fixa de não apresentar a patologia. O paciente pode, portanto, estar certo de ter tomado a medicação, sem tê-lo feito. Ou, então, achar que não precisa dela. A postura já seria danosa em qualquer tipo de afecção. Mas, no caso de doenças psiquiátricas como a esquizofrenia, o risco da não adesão tende a ampliar o descontrole dos sintomas. O Abilify convencional foi um dos primeiros antipsicóticos de uso contínuo e com reduzidos efeitos colaterais. Ele age na dopamina, um neurotransmissor que tem ação desregulada no portador de doenças psiquiátricas. Sua principal ação é melhorar os sintomas maníaco-depressivos.
Afinal, até onde vai o direito de alguém, mesmo um médico ou um familiar, de ter acesso a informações tão íntimas
de modo tão invasivo?
A pílula digital é um extraordinário passo de um movimento que, nos últimos anos, pôs a medicina em outro patamar, na antessala de um novíssimo capítulo. Vive-se no mundo do big data, termo que designa a capacidade tecnológica de capturar, organizar e interpretar automaticamente uma enormidade de dados, num dos mais interessantes saltos permitidos pela internet. Ganham-se tempo e dinheiro com a vastidão de informações coletadas em bancos de dados de hospitais e centros de pesquisa a partir das condições de saúde de milhões de pessoas. Estima-se que, se os médicos tivessem acesso às informações de todos os doentes do planeta, seria possível reduzir em 20% a mortalidade mundial. Uma das mais recentes e impactantes conquistas ocorreu com o programa Watson Health, lançado em 2015 pela IBM. O sistema de inteligência artificial, alimentado pelos servidores da empresa americana, já agrupa grande parte dos dados medicinais do planeta para facilitar o trabalho dos profissionais e acelerar as pesquisas (leia mais). Não há risco de fake news, como acontece em outros setores da informação compartilhada. Em Genebra, há outro polo espetacular, o centro de pesquisa Campus Biotech, referência em biotecnologia, que usa o big data para levantamentos na área de epidemiologia e saúde.
Remédios como a pílula inteligente podem servir de ferramenta de controle para evitar um dos maiores nós da medicina atual: o desperdício de medicamentos. A cada ano, no sistema de saúde dos Estados Unidos, jogam-se fora cerca de 750 bilhões de dólares (o equivalente a 2,4 trilhões de reais) com receitas que não são seguidas fielmente, fraudes, serviços desnecessários, entre outros. No Brasil, esse dado nunca foi levantado. O Abilify MyCite surge, portanto, também como atalho econômico. Ele foi o primeiro de sua família a ter o aval da FDA, mas existem outros na fila. Atualmente, há uma dezena de sensores semelhantes acoplados a dispositivos sendo desenvolvidos nos Estados Unidos e na Europa. As doenças avaliadas são dos mais variados tipos, como hepatite, problemas cardíacos, derrame e diabetes. A tecnologia da pílula inteligente poderá também ser usada no monitoramento de pacientes que abusam de remédios, como analgésicos e ansiolíticos. O campo é amplo.
E, como ocorreu, ocorre e ocorrerá com todas as revoluções tecnológicas, ao anúncio das maravilhas apresentadas, abre-se imensa discussão ética. A decisão de usar um recurso de rastreamento interno do corpo humano envolve questões morais delicadas. Evidentemente, o uso do remédio com o chip espião só acontecerá com o consentimento do paciente. Ainda assim, apesar dessa certeza, uma pergunta se impõe: até onde vai o direito de alguém, mesmo um médico ou um familiar, de ter acesso a informações tão íntimas de modo tão invasivo? Ressaltem-se, ainda, a fragilidade e a vulnerabilidade de uma pessoa doente, ansiosa por cura. São dilemas de cunho ético inescapáveis na era da internet, da informação democratizada, da facilidade de acesso a quase tudo e a quase todos.
Instado sobre a possibilidade de o comprimido inteligente ferir as liberdades individuais, no caso de utilização indevida das informações médicas, o diretor executivo do laboratório Otsuka, Kabir Nath, vai direto ao ponto: “Acima de tudo, deve-se valorizar a relação com o médico”.
A pílula com o sensor terá venda controlada. Já se estuda a possibilidade de torná-la compulsória, em casos específicos, desde que o paciente e corpos médicos concordem — e nessas situações haveria determinação judicial. Por enquanto, será vetada para crianças e idosos, uma vez que são pacientes mais vulneráveis. Chegará às prateleiras somente em meados de 2018. Não se sabe quando será lançada no Brasil. Há uma certeza: ela representa, além do sucesso científico, uma mudança de comportamento. Um grãozinho de tecnologia afeito a transformar o modo como lidamos com a saúde. “Abre um imenso caminho para desvendarmos doenças dramáticas como a esquizofrenia”, diz Acioly Lacerda, professor do departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo e associado da Universidade de Pittsburgh, nos EUA. Afinal, o chip fornecerá, com extrema precisão, informações às quais o médico terá acesso e que poderão ajudá-lo a chegar a conclusões inovadoras.
O anúncio da FDA celebra um ano luminoso para a evolução da medicina. A pílula inteligente é o segundo grande avanço deste ano na farmacologia. Em setembro, a FDA aprovou o Car-T, uma revolução na oncologia, a primeira terapia celular totalmente individual. São tempos de mudança.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557