A palavra-chave é descentralizar
Com o avanço da tecnologia, os serviços customizados prevalecerão e os clientes conduzirão as operações, cada vez mais, por conta própria
“Sorria, você está pagando sua conta.” A frase — que hoje pode soar um tanto estranha — deverá ganhar, em poucos anos, feições, por assim dizer, de resposta automática. Não, não se trata de uma previsão exagerada. A expectativa é que, em breve, o reconhecimento facial e selfies, acionados via celular, serão meios tão comuns para fazer um pagamento como é, atualmente, digitar a senha. Os cartões tradicionais de crédito e de débito serão secundários. O modelo consagrado de extensas redes de agências bancárias perderá cada vez mais espaço para a praticidade das operações feitas nos smartphones. As transações bancárias andarão no ritmo das novidades desses aparelhos.
Em alguma medida, esse futuro já chegou. Um de seus pilares é o chamado open banking. A regulação desse novo cenário entrou em vigor em janeiro deste ano na União Europeia — e deve ser seguida em outras regiões. Os bancos serão obrigados a compartilhar informações sobre o histórico financeiro dos clientes com outras empresas do setor, caso eles autorizem. Assim, as pessoas terão a chance de negociar financiamentos em melhores condições, por exemplo. Quanto melhor o histórico financeiro, menores os juros, maiores os prazos. “O open banking é uma tendência mundial, não tem volta. Cada país vai regular a seu modo, com maior ou menor restrição”, diz Elias Zoghbi, especialista no tema da consultoria americana Deloitte.
A transformação reforçará a expansão já acelerada das fintechs, as startups de tecnologia que atuam no sistema financeiro. Bancos tradicionais continuarão a existir, mas sua forma de operação será cada vez mais modificada pelas inovações trazidas de fora do setor. A revolução dos meios de pagamento, por exemplo, está sendo liderada não por bancos, e sim pelas novatas empresas de tecnologia. As chinesas Tencent e Alibaba nasceram, respectivamente, oferecendo um serviço de mensagens instantâneas e um site de comércio eletrônico no fim da década de 90. Contudo, diversificaram suas atividades e se tornaram líderes globais no ramo de aplicativos. O WeChat, da Tencent, tem 1 bilhão de usuários ativos no seu aplicativo de mensagens, dos quais 800 milhões utilizam o serviço de pagamento eletrônico, o WeChat Pay. O Alipay, serviço de pagamento do Alibaba, tem mais de 500 milhões de usuários. É a consagração do modelo dos superaplicativos: por meio deles, o usuário se comunica com os amigos, pede comida no restaurante — e até paga contas. Na China, o desenvolvimento da tecnologia na área de finanças não se deu por acaso. No início dos anos 1990, o país estava num estágio em que a maior parte da população não tinha acesso a serviços bancários e o número de agências era limitado. A saída foi apostar alto nos serviços digitais, que hoje têm um índice de penetração próximo de 90%.
No futuro, o relacionamento do consumidor com o banco será também diversificado. A instituição financeira vai oferecer ao cliente serviços de outras empresas e poderá ainda cuidar da gestão de seu orçamento de maneira rápida e customizada, graças a ferramentas avançadas de análise de dados e ao uso de inteligência artificial. “Será um modelo mais justo para o consumidor”, acredita o empreendedor Marcelo Maisonnave, um dos fundadores da StartSe, o maior portal brasileiro para fintechs e startups. Segundo ele, o cliente ganhará alternativas. “Produtos bons, com custo ou rentabilidade atraente, serão acessíveis a todos, e não só a quem tem alta renda”, afirma Maisonnave, que foi um dos fundadores da XP Investimentos, em 2001, e vendeu sua parte da corretora há quatro anos. A ascensão das fintechs será consolidada graças ao avanço e barateamento das novas tecnologias, como a inteligência artificial e os robôs.
A regulação também não será um impeditivo para essas companhias novatas. Especialistas da área já diagnosticaram que as fintechs lideram a corrida pela inovação no setor, algo que se traduz em mais concorrência e eficiência para todos os competidores desse mercado. Isso acontece porque os maiores bancos também estão atentos a tal cenário. Eles acompanham a inovação das fintechs e se inspiram nelas para desenvolver soluções melhores. “Será o cliente que definirá o modelo de relacionamento e a oferta de serviços, de acordo com as suas necessidades”, diz André Sapoznik, vice-presidente de operações e tecnologia do Itaú Unibanco. “A tecnologia nos permite entender com precisão cada vez maior as demandas, para atender a elas de modo customizado”, afirma o executivo, citando o uso de inteligência artificial para analisar como cada cliente usa o aplicativo do banco.
A revolução no mundo financeiro passará ainda pela disseminação do blockchain. Espécie de livro-caixa virtual, o blockchain registra transações eletrônicas — não necessariamente do mundo financeiro — de forma descentralizada. É a tecnologia por trás das criptomoedas, entre as quais a mais notória é a bitcoin, e ajuda a explicar o seu sucesso, uma vez que o blockchain agiliza as transações financeiras e reduz tanto os custos envolvidos como os riscos de fraude. Operações de compra e venda de moeda são executadas em questão de segundos a qualquer hora, em qualquer região do planeta.
Ainda não é possível dizer se as criptomoedas vão vingar e efetivamente substituir o papel-moeda. A ausência de regulação e de aceitação do dinheiro virtual por bancos centrais e governos, a falta de lastro e o anonimato que prevalecem nas operações são alguns dos fatores que conspiram contra a bitcoin e seus similares (leia artigo nas páginas seguintes). Apesar disso, a popularização do blockchain pode contribuir decisivamente para o desaparecimento gradual da moeda física.
Em todos os países, mas no Brasil de maneira acentuada, existem custos elevados de segurança no transporte de cédulas — para que fiquem disponíveis, por exemplo, em caixas eletrônicos e em agências bancárias. Outra desvantagem das notas físicas é que facilitam a lavagem de dinheiro. O admirável mundo novo financeiro trará, certamente, novos riscos. Entretanto, assim como ocorre em outras áreas, ele deverá abrir maiores oportunidades e alternativas para as pessoas, em especial aquelas dispostas a tirar proveito pleno das novidades — mesmo que seja na hora de pagar uma conta.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595