A ciranda do “sistema U”
AGU, CGU e TCU criam tantas dificuldades a acordos de leniência que já se desconfia que, por trás disso, haja interesse em “estancar a sangria”da Lava-Jato
“O que os senhores preferem: um fim horroroso ou um horror sem fim?” Essas foram as opções apresentadas por um respeitado advogado à diretoria de uma das maiores empreiteiras do país, em 2015, depois dos avanços das investigações da Operação Lava-Jato. Com a prisão de altos executivos envolvidos nas transações ilícitas, ficava evidente que havia se rompido o mecanismo de proteção que blindava as ações subterrâneas de corruptos e corruptores. As alternativas, como tentava explicar o advogado, eram duas: confessar os crimes, delatar envolvidos e colaborar com a Justiça para encerrar o martírio o mais rápido possível (o “fim horroroso”); ou, então, contestar as acusações e brigar indefinidamente na Justiça até as últimas instâncias (o “horror sem fim”). Alguns resistiram por mais tempo, caso de Marcelo Odebrecht, o então presidente da construtora fundada por seu avô Norberto. Mas, no fim, todas as grandes empreiteiras se renderam e buscaram fechar acordos de leniência, o equivalente, para as empresas, a uma delação premiada.
O que as companhias não anteciparam é que os obstáculos impostos pelas autoridades federais para homologar esses acordos seriam quase intransponíveis — e, quando os acordos são por fim fechados com um órgão federal, outra repartição pública invariavelmente contesta os termos da negociação. Parece um sistema concebido para evitar a leniência.
O tormento dessas empresas hoje responde pelo apelido de “sistema U”. Trata-se da Controladoria-Geral da União (CGU), da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Pela Lei Anticorrupção, que entrou em vigor em 2013, os acordos de leniência devem ser encaminhados pela CGU, o atual Ministério da Transparência. A companhia que adere a eles tem de identificar os demais envolvidos em infrações, entregar provas e adotar políticas de negócios que sejam transparentes e fechem as brechas para atos ilícitos; em troca, obtém redução de multas e pode participar de licitações públicas ou contratar empréstimos com bancos públicos. Ou seja: evita ser classificada como “inidônea”, o que significa ser proibida de prestar serviços ao governo.
A Odebrecht, por exemplo, fechou um acordo em dezembro de 2016 com o Ministério Público Federal em Curitiba. Em paralelo, 77 executivos assinaram acordos de delação premiada. A empresa comprometeu-se a pagar multas e reparações de 8,5 bilhões de reais, incluindo os acordos selados nos Estados Unidos e na Suíça. Mas a leniência foi questionada porque não teve a anuência da CGU. Agora, depois de um ano de novas negociações, a empreiteira está prestes a assinar outro acordo, desta vez com a CGU e a AGU. Fim da disputa? Talvez, se não houver contestações do TCU. O tribunal tem questionado diversos acordos, especialmente no que diz respeito aos valores ressarcidos aos cofres públicos.
Tome-se o caso da construção da usina nuclear Angra 3, cujas obras estão paralisadas desde 2015. Uma análise do TCU apontou uma fraude na licitação, com prejuízo de 400 milhões de reais em valores da época. Quatro construtoras foram declaradas inidôneas pelo tribunal, incluindo a UTC. Posteriormente, a empresa assinou um acordo de leniência com a CGU em que se comprometeu a pagar quase 600 milhões de reais, incluindo reparações por Angra 3. Um caso que, para a empreiteira, já deveria ter sido superado segue insepulto — com todo tipo de consequência negativa para sua atividade comercial. Outras três empresas que assinaram acordos com o Ministério Público — a Odebrecht, a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez — podem ser obrigadas a desembolsar valores adicionais.
Segundo Benjamin Zymler, ministro do TCU, o órgão não se submete nem subscreve, do ponto de vista formal, os termos do acordo de leniência e por isso pode buscar a reparação dos valores. Ao agir assim, contudo, inviabiliza a concretização, na prática, da leniência. Isso só ocorrerá quando uma empresa alcançar a proeza de celebrar acordo com os diversos órgãos públicos — um pesadelo burocrático e legal impensável nos Estados Unidos, por exemplo, onde a leniência vem sendo usada, há um bom tempo, como instrumento de combate aos crimes de colarinho-branco. As empresas americanas fazem acordo de leniência no Departamento de Justiça. E isso basta.
Advogados de empresas investigadas criticam os efeitos negativos decorrentes dessa falta de unidade, em especial a insegurança jurídica. “O governo precisa vir a público afirmar e demonstrar de forma efetiva que acordos de leniência são políticas de Estado, e não deste ou daquele governo”, diz o advogado Sebastião Tojal, que negociou os acordos de leniência da UTC e da Andrade Gutierrez. Mas, segundo ele, “falta vontade política”. “Inviabilizar os acordos significa inviabilizar o avanço das investigações da Lava-Jato, porque impede que novas provas sejam utilizadas. A quem interessa que isso aconteça?”, questiona Tojal. Na visão de executivos envolvidos nas negociações, esse é o ponto: sob a alegação de cumprirem procedimentos formais e defenderem os interesses da União, os órgãos de defesa do Estado estariam, em seu jogo de empurra, colocando obstáculos aos acordos para retardar as investigações que chegariam a políticos da alta esfera do poder.
Esse impasse tem consequências nocivas para as empresas e a própria economia. Além de serem impedidas de retomar contratos com a esfera pública, as companhias não conseguem renegociar suas dívidas. “Os questionamentos podem inviabilizar a venda de ativos”, diz a advogada Fabíola Cammarota, sócia do escritório Cescon Barrieu. “A leniência deve dar segurança jurídica.” É o oposto do que acontece quando o TCU decide cobrar valores que não foram contemplados nos acordos. Com dívidas de 3,4 bilhões de reais, a UTC pediu recuperação judicial em julho de 2017, no mesmo mês em que acertou a leniência com a CGU. Como se vê, a ciranda sem fim das empresas no labirinto do “sistema U” interessa principalmente àqueles empenhados em acobertar os desvios.
Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576