Muito além das pautas progressistas: qual é o legado de Francisco para a Igreja?
Constituição da Santa Sé, promulgada em 2022, refete a visão do Papa para o catolicismo no século XXI

Quando Jorge Bergoglio foi escolhido para liderar a Igreja Católica, em 2013, o mundo atônito se perguntou quem era o “Papa do fim do mundo”, como ele mesmo se classificou em suas primeiras palavras na sacada da Basília de Sâo Pedro. Logo, ficou claro que o colégio cardenalício havia feito uma aposta um tanto incerta, mas que apontava para um desejo de renovação da Cúria Romana, àquela altura envolta em escândalos de corrupção financeira no Banco do Vaticano e em casos de pedofilia mundo afora.
Quase dez anos depois de sua nomeação, em 2022, Francisco apresentava a consolidaçao desse processo, em uma nova versão da Constituição da Igreja Católica, em que a organização interna da Santa Sé foi completamente alterada. A Praedicate Evangelium (pregai o evangelho) foi a quinta carta apostólica da Cúria Romana na história da Igreja — a última havia sido promulgada por João Paulo II, em 1988 – e trouxe a visão do Papa sobre o papel da Igreja, em um mundo em que as transformações políticas e sociais acontecem em ritmo frenético.
As polêmicas (e às vezes dúbias) declarações de Francisco que acenam para pessoas que não seguem o evangelho à risca, como mulheres e homens divorciados, integrantes da comunidade LGBTQIA+ e representantes de outras religiões costumam fazer mais barulho. Mas é na estrutura da Igreja que reside seu maior legado. Um processo que o clero terá de decidir agora se seguirá, ou não, adiante.
A reforma responde aos apelos da maioria dos cardeais, reunidos antes do conclave de 2013, que desejavam transformar uma Cúria disfuncional e introspectiva em um organismo eficaz e voltado para o exterior, a serviço de toda a Igreja. As queixas comuns incluíam o fato de a cúpula da Igreja ter se tornado autorreferente, o tratamento desrespeitoso conferido aos bispos e a necessidade de uma cultura de trabalho mais focada na missão evangelizadora.
Eis seus principais pontos da ação reformadora de Francisco:
Dicastérios – A divisão tradicional entre Congregações e Conselhos, em que as primeiras reuniam a elite do clero e a segunda era relegada a sacerdotes de menor influência política foi abandonada. Em seu lugar, surgiram os dicastérios (tribunais, em grego). Francisco também abriu as novas estruturas para leigos (a única exigência é ser batizado) e mulheres. O número de dicastérios também foi reduzido para 16, a fim de evitar disputas políticas e fazer com que essas espécies de “ministérios” da Igreja trabalhem em cooperação.
Ênfase na evangelização – A função primária da Cúria Romana deixa de ser burocrático-administrativa e passa a ser essencialmente mas pastoral, atuando em apoio à missão do Papa e dos bispos. O Praedicate Evangelium coloca o dicastério para a Evangelização em primeiro lugar, seguido pelo dicastério para a Doutrina da Fé e pelo dicastério para o Serviço da Caridade, refletindo a prioridade da Igreja na pregação do Evangelho.
Descentralização e democratização – A carta dá caráter fundamental às conferências episcopais (reuniões dos bispos para discutir os temas da Igreja) e prega uma “descentralização saudável”, afirmando que a Cúria está a serviço integral tanto do Papa quanto dos bispos. Dá-se grande importância às visitas ad limina (viagens que os bispos fazem à Roma de tempos em tempos), com vários artigos dedicados a facilitar esses encontros.
Novos critérios para nomeação dos membros da Cúria – Segundo a Constituição, os membros da Cúria devem ser escolhidos de acordo com sua vida espiritual, experiência pastoral, sobriedade de vida e amor aos pobres, além de competência e capacidade de discernimento. A diversidade cultural é encorajada, e espera-se que os membros retornem às suas dioceses ou congregações religiosas após um período limitado. Medidas que, em alguma medida, refletem uma tentativa de, ao menos, minimizar comportamentos reprováveis de sacerdotes, como fofocas e intrigas, que marcaram pontificados anteriores ao de Francisco.