Igreja Anglicana avalia se referir a Deus com pronomes neutros
A liberalidade não foi bem recebida universalmente. Um grupo de padres tradicionalistas de Londres planeja reter sua contribuição anual em protesto
Não é de hoje que a Igreja Anglicana, estabelecida originalmente na Inglaterra do século XVI, demonstra flexibilidade para se adaptar aos tempos modernos. Há meio século ela permite o acesso de mulheres ao sacerdócio e, mais recentemente, autorizou que se tornassem bispas. A busca pela igualdade avançou agora mais uma casa, depois que o Sínodo Geral autorizou a bênção nos altares às uniões de pessoas do mesmo sexo. Houve celebração, mas também protesto da comunidade LGBTQIA+, que pede outro salto, com a realização de casamentos como os celebrados entre heterossexuais, e não apenas a bendição. Depois de intenso debate, ficou decidido também o início de uma revisão da proibição de bodas gays entre sacerdotes (os párocos anglicanos não praticam o celibato). Uma ala ainda mais progressista estuda a possibilidade de usar pronomes neutros, os mesmos utilizados por pessoas que não se identificam com o gênero de nascimento, para se referir a Deus.
O próprio arcebispo da Cantuária, Justin Welby, o mais graduado da hierarquia, atiçou o debate com questionamentos a respeito da forma mais adequada para se referir ao Senhor. “Deus não é Pai da mesma forma que um ser humano é pai. Deus não é definível”, afirmou, reforçando outra regra liberal da Igreja Anglicana, que permite ao clero interpretar e adaptar textos sagrados. “A principal autoridade dessa denominação religiosa não é alguma figura papal, mas a própria escritura, atalho para liberar os sacerdotes de qualquer determinação autoritária”, diz Richard Rex, professor de história da Universidade de Cambridge. Tal característica já levou alguns membros do clero a adotar a linguagem neutra antes de qualquer autorização formal. O reverendo Anderson Jeremiah, membro do Sínodo Geral e teólogo da Universidade de Lancaster, integra o grupo porque, segundo ele, “na Bíblia, a figura de Deus é descrita como pai e mãe”.
Flexibilidade é atitude compreensível e até esperada em uma igreja que nasceu atendendo a interesses políticos. O rei Henrique VIII, crítico da Reforma Protestante, que chegou a ser recompensado com o elevado título de Defensor da Fé, rompeu definitivamente com a Igreja Católica em 1534, depois que o papa Clemente VII se recusou a conceder o divórcio do matrimônio com Catarina de Aragão. O monarca desejava se casar com uma das damas de companhia da rainha, Ana Bolena, a quem tinha engravidado — indômito, ele a dispensaria, pouco depois, e se uniria a outras quatro mulheres, numa das mais badaladas aventuras familiares da história da civilização. Henrique VIII assumiu o papel de Chefe Supremo da Igreja Anglicana, título que passou a ser repassado a todos os sucessores, e foi ele quem nomeou o primeiro arcebispo da Cantuária. O clérigo, que não era bobo nem nada, dissolveu o casamento com Catarina em um piscar de olhos e, de quebra, encampou e distribuiu entre os nobres as extensas propriedades de terra da Igreja de Roma. A aprovação do Ato de Supremacia pelo Parlamento inglês solidificou a ruptura.
Inaugurada sob tais circunstâncias, a Igreja Anglicana sempre manteve uma relação próxima ao poder e ao cotidiano do mundo terreno. Os principais bispos até hoje fazem parte automaticamente da Câmara dos Lordes. “Não é surpresa que a igreja tenda a se mover com as correntes políticas, especialmente em questões morais e éticas”, diz Andrew McGowan, da faculdade de teologia da Universidade Yale. Segundo ele, a flexibilização dogmática, uma contradição em termos, é mais aceita por nações democráticas e progressistas, que tendem a adaptar a religião ao contexto atual, enquanto países regidos por ditaduras e marcados pelo conservadorismo apontam na direção oposta.
A liberalidade não foi bem recebida universalmente. Um grupo de padres tradicionalistas de Londres fundou uma estrutura independente dentro da Igreja Anglicana e planeja reter sua contribuição anual de 235 000 libras para a diocese de Oxford, em protesto. A retaliação tem o apoio do conservadoríssimo Conselho Evangélico, para quem as medidas significam um “afastamento da Bíblia”. O banho de modernidade, caminho de oxigenação e abertura, contudo, não tem sido capaz de frear outro fenômeno dos tempos atuais: o esvaziamento da fé. Pela primeira vez na história, menos da metade dos britânicos (46,2%) se identificou como cristãos, no censo de 2021. “A morte da rainha Elizabeth II fragilizou o próprio conjunto de valores que ela incorporou em vida”, diz Justin Meggitt, teólogo da Universidade de Cambridge. Às vésperas de sua coroação, o rei Charles III, preocupado em evitar incêndios e em dourar sua imagem, sempre na corda bamba, ainda não se manifestou publicamente sobre as sacudidas da igreja que lidera. Dificilmente será contra.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837