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‘Viva la muerte!’

Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 4 jun 2024, 16h09 - Publicado em 17 Maio 2019, 07h00

Com pouco mais de quatro meses de existência, o governo Bolsonaro já garantiu o favoritismo para empalmar o troféu Millán-Astray de obscurantismo. Millán-Astray é o general das hostes fascistas na Guerra Civil Espanhola celebrizado pelo brado “Abajo la inteligencia, viva la muerte”. O governo Bolsonaro, com sua ofensiva contra a universidade (“Abajo la inteligencia”) e seu festival de licenças e incentivos para que a população desfrute das melhores condições de matar-se entre si (“Viva la muerte”), cumpre à perfeição a dupla palavra de ordem do general.

São essas as duas iniciativas nas quais mais se empenha o governo. A reforma da Previdência não vale; é causa do governo paralelo do ministro Paulo Guedes, à qual Bolsonaro empresta apenas distraído cuidado. A investida contra a universidade ganhou tração com o anúncio de cortes em seus orçamentos, mas responde a uma característica central de Bolsonaro e do bolsonarismo. O antiesquerdismo é a motivação primária, mas alimenta­-se também de um anti-intelectualismo de fundo que a direita brasileira bebeu nas matrizes europeias e na América do modelo Trump. O avanço na batalha conheceu um tropeço na inépcia do primeiro escolhido para o Ministério da Educação, mas parece ter encontrado no atual, Abraham Weintraub, um soldado suficientemente bom de briga para encará-la.

O capítulo do culto à morte, adequado complemento ao desprezo pelo saber, tem merecido empenho ainda mais explícito do governo. Em janeiro Bolsonaro assinou decreto facilitando a posse das armas. O ministro Sergio Moro, sob cujas barbas brotam tais medidas, explicou na ocasião que posse, ou seja, ter armas guardadas em casa, difere de porte, que é circular com elas. “O porte é uma situação diferente, que precisa de análise mais profunda”, disse em entrevista à GloboNews. Mas quem se importa com Moro? Bolsonaro não, e neste mês, com a “análise mais profunda” relegada ao baú dos atropelos ao ministro da Justiça, assinou decreto credenciando diversas categorias profissionais a zanzar com armas na cintura. Tanto quanto o decreto em si, foi eloquente do bangue-bangue acalentado pelo governo o ambiente em que se deu sua assinatura, com deputados e senadores, eufóricos e boçais, a fazer os dedos de revólveres. Pelo grotesco, a cena ficará nos anais da truculência assim como, nos anais da corrupção, ficou a cena da turma de Sérgio Cabral de guardanapo na cabeça num restaurante de Paris.

A ofensiva de Bolsonaro contra a universidade alimenta-se também de anti-intelectualismo

O general Millán-Astray é lembrado pelo episódio em que contracenou com o então mais respeitado intelectual da Espanha, o filósofo Miguel de Unamuno. No dia 12 de outubro de 1936 comemorava-se no salão nobre da Universidade de Salamanca, da qual Unamuno era reitor, o dia da descoberta da América. Fazia três meses que o levante do general Franco contra o regime de Madri arrastara o país à guerra civil e à divisão em duas zonas, uma sob os franquistas, apoiados por Hitler (ué, ministro Araújo, mas ele não era de esquerda?), e a outra sob a resistência republicana. Salamanca ficava na zona franquista, e naquele dia a universidade estava coalhada de militares e membros da “Falange”, a versão local do nazismo e do fascismo. Millán-­Astray fez um discurso em que atacou o País Basco e a Catalunha como “cânceres no corpo da nação”. Sua fala foi celebrada por um “Viva la muerte” vindo da plateia (era o grito de guerra de Millán-­Astray) e saudações fascistas.

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Unamuno, que até então apoiara o levante de Franco contra a bagunça dos governos republicanos e os ardis dos comunistas, tomou a palavra. “Todos me conhecem e sabem que sou incapaz de me calar. Há momentos em que calar é mentir”, começou. “Havia um silêncio cheio de medo”, narra o historiador Hugh Thomas. Unamuno continuou: “Acabei de ouvir um brado necrófilo e insensato”, e acrescentou que a Millán-Astray faltava “grandeza espiritual”. O general cortou-o: “Abajo la inteligencia! Viva la muerte”. Unamuno retomou: “Este é o templo da inteligência, e eu sou seu sacerdote mais alto. Vós profanais este sagrado recinto. Ganhareis, porque possuís a força bruta. Mas não convencereis, porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir é necessário possuir o que vos falta: a razão e o direito, em vossa luta”. Unamuno foi retirado do recinto sob escolta e até morrer, apenas dois meses e meio depois, ficou em prisão domiciliar. Ele tinha razão: ganhou a força bruta. Sobreviveu-lhe, como legado, seu discurso contra a barbárie e a irracionalidade, para ser lembrado onde for que pairem como ameaças.

Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635

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