Sem polarização: disputa na menor cidade do Brasil tem um único candidato
Serra da Saudade, em Minas Gerais, possui apenas 833 habitantes, pouco menos de 1 300 eleitores e vive revezamento familiar na prefeitura
Existe pelo menos um lugar no país onde a disputa entre esquerda e direita ou entre petistas e bolsonaristas não será tema de campanha nem fará a mínima diferença no resultado das eleições de outubro. Um lugar onde não haverá debate, comício nem boca de urna. Um lugar onde fake news e inteligência artificial não serão motivos de preocupação. Um lugar onde o vencedor será conhecido antes do início da campanha e que prescinde de pesquisas de opinião para saber o nome do favorito. Em Serra da Saudade, no interior de Minas Gerais, Neusa Ribeiro se prepara para assumir pela terceira vez o comando da menor cidade do país. Se nada de anormal acontecer até outubro, ela será a única candidata a disputar os votos dos 1 295 eleitores do município. Deverá, portanto, substituir o prefeito Alaor Machado, seu ex-marido, dando sequência a um curioso revezamento que já se estende por mais de duas décadas.
A advogada Neusa Ribeiro e o fazendeiro Alaor Machado são filiados ao mesmo partido, o PP, defendem os mesmos projetos e têm se alternado no poder desde 2000, quando Machado foi eleito e reeleito prefeito. O casal se divorciou em 2004, o que deu início ao ciclo político literalmente caseiro. Em 2008, Neusa foi eleita para o lugar do ex-marido, que, em 2020, foi eleito para o lugar da ex-mulher, que agora se prepara para voltar ao lugar do ex-marido, que, aos 70 anos, planeja se aposentar. Administrar Serra da Saudade não chega a ser um desafio. Distante 250 quilômetros de Belo Horizonte, a cidade tem 833 habitantes, catorze ruas, 337 casas, um posto de saúde, uma escola e duas igrejas. O acesso a remédios e combustível é uma das prioridades da população, já que o município não tem farmácia nem posto de gasolina. Para abastecer os veículos e comprar medicamentos, é preciso percorrer 12 quilômetros até o comércio mais próximo.
Nas eleições de 2020, 106 municípios do país tiveram um único candidato concorrendo a prefeito. Serra da Saudade, portanto, não é um caso sem precedentes nesse quesito. O que chama atenção na menor cidade do país é que tudo parece uma ação entre amigos (no bom sentido). Na Câmara Municipal, nenhum parlamentar da atual legislatura faz oposição ao governo. Dos nove vereadores, cinco pertencem ao PP e quatro ao Podemos — e todos são “amigos” pessoais do prefeito. “A oposição na cidade fica desestimulada quando percebe que o nosso trabalho atende ao que a população precisa. Ela até existe, mas acaba não tendo muito que falar”, afirma Neusa. O último resquício de oposicionismo foi registrado nas eleições de 2020, quando um ex-vereador do Avante lançou candidatura própria. Ele teve apenas 99 votos e se afastou da política.
Em Serra da Saudade, as campanhas eleitorais seguem uma dinâmica diferente da de cidades onde a ideologia e o poder econômico dos candidatos podem ser decisivos. Machado, por exemplo, garante que gastou apenas 20 000 reais em sua última disputa, conta que apoiou Jair Bolsonaro em 2018, disse que depois se declarou traído pelo capitão, que defendeu uma proposta que acabava com a autonomia política dos municípios com menos de 5 000 habitantes, mas isso não fez nenhuma diferença. Segundo o TSE, ninguém é filiado ao PT em Serra da Saudade. Já o PL, partido do ex-presidente, tem dez correligionários registrados. “A polarização entre Lula e Bolsonaro não interfere na eleição por aqui. Em cidade pequena, o eleitor vota no candidato, independentemente do partido ou de quem ele seja aliado”, diz o prefeito. A cidade tem mais eleitores do que habitantes porque muita gente vai trabalhar em outros lugares, mas mantém o domicílio eleitoral.
Diferentemente de outras localidades, Serra da Saudade enverga uma raríssima condição. Uma das principais preocupações dos brasileiros, a segurança pública, lá não é problema. O último assassinato ocorreu há 57 anos e o posto policial do município registrou apenas um furto no ano passado. No entanto, assim como em outras cidades, o orçamento da prefeitura só permite a realização de obras caso receba o reforço das famosas emendas parlamentares — foram apenas 2,5 milhões de reais nos últimos quatro anos, dinheiro que mal deu para recapear algumas ruas. Como a maioria das cidades, Serra da Saudade compromete quase toda a sua receita com a máquina administrativa. Os salários dos 139 servidores giram em torno de 3 000 reais. Um detalhe interessante: o maior deles, de 13 000 reais, é pago ao controlador-geral do município, Marcelo Ribeiro Machado, filho do prefeito Alaor Machado e da futura prefeita Neusa Ribeiro. Tudo em casa.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899