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Revelação de que Geisel ordenou mortes vem em momento ‘importante’

Para especialistas, documento da CIA amplia pressão por revisão da Lei da Anistia. Coordenador da Comissão da Verdade classifica detalhes como 'escabrosos'

Por Leonardo Lellis e João Pedroso de Campos
Atualizado em 11 Maio 2018, 18h15 - Publicado em 11 Maio 2018, 14h22

A revelação, a partir de um memorando da CIA, de que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil de 1974 a 1979, durante a ditadura militar (1964 a 1985), tinha ciência e orientou a execução de opositores do regime, vem em momento “importante” da vida do país na avaliação de quem se dedica a estudar o período.

A revelação choca e é muito grave. Confirma algo que se pensava: que as ordens e o modo de se fazer execução vieram do próprio presidente da República”, afirma Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e primeiro coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Para o jurista, a sociedade precisa saber o que aconteceu no período e, para tanto, o relatório da central de inteligência dos EUA veio à tona na hora certa. “A história do Brasil se escreve através de linhas tortas. Nós estamos em um período eleitoral e o país deve ter consciência desses fatos, até para que não se tenha deturpação da vontade popular em votar ou eleger pessoas que ainda defendem esse período nebuloso”, diz Dipp. 

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Líder de pesquisas de intenção de voto sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o deputado federal e pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL-RJ) costuma dar declarações em que enaltece o regime militar. Ele chegou a dedicar seu voto no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) ao coronel Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi em São Paulo e notório torturador.

Dipp também previne eventuais desqualificações do memorando da CIA, “que sabia tudo sobre o Brasil e, de certa forma, alimentava intelectualmente e ideologicamente as Forças Armadas”. “Não adianta alegar que seja um documento incompleto ou inverídico, porque ele só vem a corroborar aquilo que já se sabia, não com tantos detalhes, em relação à forma de participação de um presidente da República.”

O professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Dallari, que coordenou a comissão durante na etapa final dos trabalhos, classifica o documento como “estarrecedor”. “Algo que é de uma barbaridade enorme, o extermínio de seres humanos, passa a ser tratado como uma política pública. O presidente decide se vai dar continuidade à política do governo anterior ou se vai fazer ajustes com a maior naturalidade”, afirma. 

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“Essas graves violações de direitos humanos na ditadura foram uma política de Estado, não foram produto, como os militares queriam fazer crer, de alguns psicopatas que agiram isoladamente”, diz Dallari, em referência às conclusões da CNV. “O documento da CIA comprova o que já se sabia, mas os detalhes são escabrosos, muito graves. O fato de sabermos que os governos militares estavam envolvidos na repressão não nos deve fazer perder a sensibilidade com o horror”, diz.

Para o historiador Boris Fausto, o documento confirma o prejuízo à imagem de liberal atribuída a Geisel, responsável pelo início da “abertura” do regime. “Há depoimentos famosos dele em que ele faz defesa da tortura em certas circunstâncias. Não que ele não fosse algo diferente dos superduros de Garrastazu Médici e companhia, mas agora é um passo a mais, é um reconhecimento, uma afirmação pela CIA de que ele acabou concordando com a morte de gente considerada ‘altamente perigosa’”, conclui Fausto. 

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O historiador observa que o documento permite entender por que Geisel escolheu o general João Baptista Figueiredo para suceder-lhe na Presidência da República. “O Geisel também não tem nada de liberal, tem responsabilidades profundas, mas também tem a intenção de promover uma abertura no regime. E não por pressões populares, mas, sobretudo, porque ele estava interessado na estrutura hierarquizada do Exército, que vinha se desmontando dia após dia”, explica.

O relato sobre o aval de Ernesto Geisel a execuções sumárias de opositores do regime militar foi extraído de um memorando do ex-diretor da CIA Willian Egan Colby enviado ao então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, datado de 11 de abril de 1974. Trata-se de um dos milhares de documentos da relação dos Estados Unidos com a América do Sul entre 1969 e 1976 mantidos em confidencialidade por mais de quatro décadas e que, desde dezembro de 2015, estão disponíveis para consulta pública.

Conforme o memorando, a autorização para a continuidade do extermínio de opositores foi dada por Geisel em 1º de abril de 1974. Dois dias antes, em uma reunião com o general Milton Tavares de Souza, que deixaria o comando do Centro de Inteligência do Exército (CIE), o general Confúcio Danton de Paula, que assumiria o cargo, e Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Insteligência (SNI), Souza informou o presidente sobre as execuções de 104 pessoas pelo CIE durante o governo Médici e pediu pediu o aval dele para manter a “política”.

O documento afirma que Ernesto Geisel concordou e determinou a João Baptista Figueiredo que continuasse com as execuções de “subversivos perigosos”. Geisel recomendou a Figueiredo ter um “grande cuidado” para que os assassinatos ocorressem apenas nesses casos. O presidente ainda instruiu o general a dar sua autorização a cada execução levada a cabo pelo CIE.

Arquivos

Diante da revelação do documento da CIA, Pedro Dallari cobra um posicionamento das Forças Armadas, um mea-culpa sobre a tortura durante a ditadura militar. “Se não houver assunção, pelas Forças Armadas, de maneira clara, do que houve, sempre vai ficar essa situação. Enquanto as Forças Armadas não fizerem isso, sempre vai ficar aquele questionamento sobre a posição deles” afirma.

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Gilson Dipp tem avaliação semelhante. “As Forças Armadas não precisam se envergonhar agora. Todo mundo tem que fazer sua penitência. Até porque hoje não se pensa como antes. Não se pode esconder [os documentos] para se preservar uma pseudoautoridade que não divulgue documentos daquela época que possam reconstruir a história do Brasil.”

Em relação à reunião entre Ernesto Geisel, os generais do CIE e João Baptista Figueiredo e ao aval de Geisel à continuidade das execuções sumárias, relatados pelo memorando da CIA, o Ministério da Defesa e o Exército alegam que “os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época – Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos – em suas diferentes edições”.

Lei da Anistia

Gilson Dipp também cobra que o Supremo Tribunal Federal (STF) volte a analisar as ações sobre a revisão da Lei de Anistia que pendem de julgamento na corte. Em 2010, por 7 votos a 2, o plenário do STF considerou constitucional a lei que anistiou militares e militantes políticas por suas ações. A ação foi movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

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“O Supremo tem que retirar de seus arquivos empoeirados as ações que digam respeito ao interesse do povo brasileiro e parar de discutir aspectos políticos e mesquinharias para dar holofote a cada um de algum de seus ministros. Mesmo que seja para manter sua posição, mas que julgue o que esta lá”, afirma o jurista.

Pedro Dallari compara o Brasil a países sul-americanos como Argentina, Uruguai e Chile, que processaram e julgaram militares envolvidos com violações em suas respectivas ditaduras. “Mesmo nos embates recentes que têm havido no Supremo, nas duas alas há ministros com forte compromisso com direitos humanos. Há, sim, uma maior sensibilidade para a necessidade de o STF dar uma resposta que eleve o padrão dos direitos humanos no Brasil e uma disposição de enfrentar esse tema difícil”, diz ele. 

O historiador Boris Fausto, por outro lado, expressa sua descrença em relação à revisão da Lei da Anistia. “Na prática, isso está tão longe da realidade. Estamos ameaçados de um avanço da extrema direita que pode vir pela via eleitoral.”

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