Queiroz fala a VEJA sobre caso das rachadinhas e laços com o clã Bolsonaro
'Nunca fui abandonado', diz o PM da reserva sobre a família do presidente; hoje, ele se dedica a costurar sua candidatura a deputado federal pelo Rio
Pivô do primeiro escândalo pós-eleição de 2018, com a vitória de Jair Bolsonaro, identificado como operador de um esquema de rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, o policial militar da reserva Fabrício Queiroz se dedica agora a costurar sua candidatura a deputado federal pelo Rio de Janeiro. Para isso, usa os laços, nunca desfeitos, com o clã presidencial, do qual se apropriou até do bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, pregado em suas redes sociais. Livre das acusações depois que a Justiça deliberou ter havido irregularidades no inquérito, Queiroz, 56 anos, continua a ter acesso à família, por meio de interlocutores — “para não criar saia-justa” —, e foi dessa forma que recebeu aval e incentivo do agora senador Flávio para a empreitada eleitoral. “Ele disse que eu tinha que vir candidato mesmo”, declarou com exclusividade a VEJA o amigo de quatro décadas do presidente.
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Durante quase duas horas, em sua primeira grande entrevista desde a explosão do caso, o ex-PM afirma que não guarda mágoa da terceirização de contatos, mesmo tendo tanta intimidade com o clã. “Nunca fui abandonado”, diz, para em seguida deixar entrever certo ressentimento com o “Comando”, como chama o velho amigo: “Se eu sou o presidente, teria me levado para Brasília nem que fosse para cortar grama no palácio”, resume. E, então, o celular toca e surge na tela “Bolsonaro 2022”, com DDD de Brasília. Não, diz ele, não é o que parece.
Os laços com a primeira-família seguem visíveis em cada passo do pré-candidato Queiroz. Além de exibir na internet fotos ao lado do presidente e de seus filhos, os quais lembra de ter pegado no colo quando pequenos, também tira proveito da profícua rede de contatos dos tempos da campanha bolsonarista. Queiroz tem se encontrado com grupos de direita, marcado presença em atos de policiais — base de apoio do clã — e usado seu acesso privilegiado para turbinar o cacife na busca por um partido. De olho no PTB, há cerca de dois meses ofereceu à então presidente da sigla, Graciela Nienov, um encontro com Bolsonaro, que seria agendado por um intermediário. “Ele vendeu espaço na agenda do presidente em troca da candidatura pelo partido”, conta um cacique petebista.
Fato é que, no dia 11 de janeiro, Nienov posou ao lado do presidente em fotos e vídeos. Perguntado sobre o favor, Queiroz desconversa aos risos, com seu jeito bonachão e carioquíssimo: “Quem sou eu? Ela não precisa disso”. O ex-assessor-motorista-segurança da família tem flertado também com PP, Patriota, PRTB, DC, Agir e até o riquíssimo União Brasil. Só na segunda semana de março, esteve com o novo presidente do PTB, Marcus Vinícius Neskau — que preferiria vê-lo candidato a deputado estadual — e tomou um café com Domingos Frazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, cuja família está montando o União Brasil no Rio. “Ele é uma incógnita, pode fazer 10 000 ou 70 000 votos”, avalia um dirigente petebista. Queiroz não esconde sua preferência. “O que eu queria era ouvir da boca do Flávio: ‘Vem para o PL’”, confessa. Não ouviu, mas em outra ida a Brasília, em dezembro, recebeu o recado de que o ex-chefe abençoava suas pretensões eleitorais.
Relembrando o conturbado dezembro de 2018, quando o escândalo da rachadinha ruiu os planos de assessorar Flávio no Senado, e os meses que se seguiram, Queiroz dá, pela primeira vez, sua versão sobre o que o fez se esconder por um ano e meio em Atibaia, no interior de São Paulo. Nega que estivesse fugindo para não ser preso. Resolveu sumir, diz, porque o miliciano Adriano da Nóbrega, ex-capitão do Bope com quem chegou a dividir o mesmo batalhão e atuou em várias operações — “o melhor policial que conheci” —, morto em 2020 pela polícia, na Bahia, o alertou de que havia gente querendo matá-lo. Assustado, relata, procurou um conhecido para falar com o “pessoal lá de cima”. O tal conhecido era próximo de Frederick Wassef, ligado ao clã (depois, assumiria a defesa de Flávio Bolsonaro), e assim Queiroz teria ido parar na casa do advogado em Atibaia, onde se sentiu protegido, blindado da imprensa e tranquilo para tratar o câncer de intestino.
Ele jura de pés juntos que nunca, jamais, se encontrou ou falou com Wassef. “Estou doido para conhecer esse cara, me ajudou muito”, reforça. E reclama da Operação Anjo (esse seria o apelido que o advogado ganhou dos Queiroz, embora eles neguem), em que a polícia entrou na casa, o capturou sentado no sofá da sala e o levou de helicóptero para o Rio sob alegação de obstrução de Justiça — a seu ver, uma “prisão espetaculosa”.
Na ocasião, Queiroz passou quase um mês na cadeia, enquanto sua mulher, Márcia Aguiar, também alvo da operação, era considerada foragida — ele afirma que ela voltou para casa, na Zona Oeste do Rio, e não foi procurada por ninguém. Os dois acabaram cumprindo prisão domiciliar até o entendimento judicial de que as principais provas do inquérito haviam sido obtidas de forma irregular e o caso voltar à estaca zero. Libertado, decidiu alçar outros voos.
Queiroz se alonga ao explicar em minúcias que depositou 89 000 reais na conta de Michelle Bolsonaro para quitar três empréstimos pessoais que obteve do “Comando” em momentos de necessidade — uma prova de apreço, porque, revela, “o Jair é assim com dinheiro” (fechando o punho). Já no caso de outra evidência apontada pelo MP no inquérito anulado, de que onze assessores, incluindo parentes seus e do finado capitão Adriano, transferiram ou depositaram na sua conta mais de 2 milhões de reais entre 2007 e 2018, ele substitui explicações por provocações. “Qual é o problema de ter dinheiro na minha conta? Não está na minha cueca, não.”
Queiroz também aparece na ação como responsável por pagar contas de Flávio — quitou mensalidades escolares das filhas dele e o plano de saúde da família. Chegou a depositar 25 000 reais em espécie na conta de Fernanda, mulher do senador, dinheiro que, segundo a promotoria, teria ajudado a quitar uma parcela de um imóvel do casal em Laranjeiras, Zona Sul do Rio — uma das transações imobiliárias do senador nas quais as investigações detectaram indícios de lavagem de dinheiro. Ele afirma que nunca participou de desvio algum. Encerra o assunto com um comentário machista, grosso mesmo, bem ao seu estilo: “Gosto da rachadinha, mas da feminina”. E dá uma gargalhada.
Livre, leve e solto após as deliberações do Superior Tribunal de Justiça que praticamente enterraram a denúncia, Queiroz deu adeus à vida discreta e pôs em marcha a campanha eleitoral. Criou uma conta no Twitter e liberou o acesso ao seu Instagram, que era restrito. Com a ajuda das filhas Melissa, 20 anos, e Evelyn, 26, posta fotos antigas ao lado do amigo Bolsonaro, publica montagens que o associam ao ideário do presidente e tem até seu próprio “telejornal”, a Tribuna do Queiroz. Nos vídeos, incensa as decisões do Planalto, detona a esquerda e comenta, em tom sabichão, até a guerra na Ucrânia. Entremeia com anúncios em que seu rosto aparece com a bandeira do Brasil ao fundo, enquanto um locutor vaticina: “Atenção, Rio, Fabrício Queiroz vem aí”. Para agradar ao eleitorado evangélico, tem tentado não aparecer tomando cerveja — bebida preferida, ao lado de um licor de uísque —, circula entre os colegas da polícia, almoça com paraquedistas e prestigia ação social da prefeitura. “Depois de virar um leproso, quero mudar isso aí”, avisa. Se for com imunidade parlamentar, melhor ainda.
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781