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Quebra de hierarquia: os bastidores da demissão do comandante do Exército

Júlio César de Arruda, exonerado no sábado passado, se recusou a cumprir uma ordem de Lula: revogar a nomeação de um militar bolsonarista

Por Daniel Pereira, Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h56 - Publicado em 27 jan 2023, 06h00

O general Júlio César de Arruda exerceu o cargo de comandante do Exército por apenas duas semanas, o menor período de tempo desde a Proclamação da República. Nomeado em 6 de janeiro com base no critério da antiguidade, ele acabou demitido no último sábado, 21, num desdobramento da insatisfação do presidente Lula com a participação direta ou indireta de militares na invasão e depredação das sedes dos três poderes, em Brasília. Após escolher o sucessor para o posto, Lula disse que o novo comandante, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, pensava exatamente como ele, que defende a despolitização dos quartéis. Já o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, declarou que Arruda caiu em razão de uma “fratura de confiança”. Essa expressão define bem o caso, já que o general demitido não só demonstrou resistência para cumprir uma ordem do presidente, que é o comandante supremo das Forças Armadas, como insinuou que resistiria a uma eventual decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito dos atos antidemocráticos. Ou seja: havia risco de fratura tanto nas relações de hierarquia como nas institucionais.

BARRADO - Tenente-coronel Mauro Cid: o pivô da crise -
BARRADO - Tenente-coronel Mauro Cid: o pivô da crise (Alan Santos/PR)

A troca de comando no Exército pegou de surpresa Arruda e foi fruto de uma pressão insistente de Lula. Na sexta-feira 20, o presidente ligou para Múcio e disse que não aceitaria a efetivação do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, como chefe do 1º Batalhão de Ações e Comandos, sediado em Goiânia. Na manhã do dia seguinte, ele reforçou a cobrança e deixou claro que queria o caso resolvido rapidamente. Lula lembrou ao ministro que Cid era investigado no STF em um inquérito que aborda a participação do militar numa live na qual Bolsonaro apresentou trechos de uma apuração da Polícia Federal sobre um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com o objetivo de colocar em dúvida a segurança das urnas eletrônicas. Acossado, Múcio não teve facilidade para cumprir a missão recebida do chefe. Arruda argumentou ao ministro que a ascensão de Cid à chefia do batalhão, programada para fevereiro, havia sido formalizada em maio de 2022 com base em critérios técnicos. O tenente-coronel teria todas as credenciais para assumir por méritos a função. Por isso, não haveria razão para recuo, alegou o general, desconsiderando a vontade do presidente. Houve ainda um diálogo interpretado como ameaça de rebelião.

ACORDO - Tomás: o novo comandante negociou o pedido de afastamento de Cid -
ACORDO - Tomás: o novo comandante negociou o pedido de afastamento de Cid (./Reprodução)

Na manhã da sexta-feira 20, Lula conversou com Arruda e os comandantes da Marinha e da Aeronáutica num encontro pensado para tentar aproximar os participantes e desanuviar o clima de desconfiança. Terminada a reunião, começou a circular na cúpula do Exército a informação de que haveria uma operação da Polícia Federal contra Cid, determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Falava-se em busca e apreensão na casa do tenente-coronel e até mesmo na prisão dele. Cid mora em uma área conhecida como “Fazendinha”, um condomínio exclusivo para oficiais-generais, mas que conta com uma espécie de puxadinho transformado em moradia para outros poucos privilegiados. Ao saber da possibilidade de uma operação no local, Arruda, que também mora na “Fazendinha”, avisou colegas de farda e o ministro Múcio de que a Polícia Federal seria impedida de entrar no condomínio e cumprir qualquer tarefa designada por Alexandre de Moraes. “Ninguém mexe com ele aqui” e “Ninguém tira ele daqui” foram alguns de seus rompantes, conforme relato de diferentes fontes.

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A VEJA, um general que pediu para não ser identificado alegou que não se tratava de uma ameaça de confronto, mas de um alerta para a necessidade de uma ação combinada entre as partes. Qualquer operação da PF teria de ser informada previamente à inteligência do Exército a fim de evitar um “problema” como o que aconteceu no mês passado, quando policiais à paisana foram ao QG sem avisar, prenderam um manifestante e, cercados, só conseguiram se desvencilhar da multidão, que pensou se tratar de um sequestro, depois da intervenção de soldados. Segundo o mesmo general, os militares consideram ter autonomia sobre as áreas que ocupam, como a tal “Fazendinha”. Esse entendimento explicaria a posição de Arruda e do chefe do Comando Militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, de não aceitar que a Polícia Militar entrasse no acampamento dos bolsonaristas no quartel-general do Exército, ainda na noite do fatídico dia 8 de janeiro, para prender radicais que participaram dos ataques às sedes dos três poderes. Na ocasião, Dutra chegou a afirmar para o interventor na área de segurança do Distrito Federal, Ricardo Cappelli, que poderia ocorrer um “derramamento de sangue” caso a polícia insistisse em efetuar prisões durante a noite. Houve um acordo entre as partes, e a desmobilização do acampamento ocorreu apenas na manhã seguinte.

NOS BASTIDORES - Múcio, Gilmar e Moraes: recado de que nomeação era inaceitável e rumor sobre busca e apreensão
NOS BASTIDORES - Múcio, Gilmar e Moraes: recado de que nomeação era inaceitável e rumor sobre busca e apreensão (André Borges/EFE; Mateus Bonomi/AGIF/AFP; Rosinei Coutinho/SCO/STF)

Evidentemente, a história toda é permeada por um forte ingrediente político. Militares graduados alegam que Lula e o STF estão usando Cid como pretexto para chegar ao ex-presidente. O plano seria tornar Bolsonaro inelegível e, se possível, prendê-lo. Até aliados do presidente reconhecem que haverá um esforço para que Bolsonaro enfrente as mesmas agruras pelas quais Lula passou. “Vejo como uma maldade o que estão fazendo com o Cid, uma perseguição violenta. Ele está sendo usado para escalar (até Bolsonaro)”, diz um oficial do Exército. Essa tese não é de todo despropositada. Horas antes da demissão do general Arruda, integrantes do Executivo, como o próprio Múcio, e do Judiciário, como o ministro do STF Gilmar Mendes, trocaram mensagens sobre a melhor maneira de impedir que o ajudante de ordens do ex-presidente assumisse a nova função, sob a alegação de que a escolha de um bolsonarista de proa para chefiar um posto estratégico a apenas 200 quilômetros de Brasília era arriscada. O Supremo, por exemplo, não aceitaria a ascensão de Cid, investigado também por disseminar fake news.

Ficou combinado que o Poder Executivo enviaria um pedido formal de informações ao ministro Alexandre de Moraes sobre a situação de Cid na Corte. A ideia era usar essas informações como pretexto para justificar a suspensão da nomeação do tenente-coronel ao batalhão de Goiânia. Antes de o plano ser colocado em prática, Moraes reclamou da tentativa do governo de terceirizar para ele a solução do problema, mas, mesmo assim, confirmou aos envolvidos que Cid estava enfronhado nas apurações em curso. Houve consenso de que politicamente seria melhor barrá-lo agora do que comprar uma briga com ele efetivado no posto para o qual foi designado por Bolsonaro. “A nomeação do Cid seria uma provocação ao Alexandre de Moraes. Imagine o que aconteceria se ele assumisse o batalhão e o ministro determinasse a prisão dele”, declarou um assessor de Lula.

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CONFRONTO - Acampamento golpista em Brasília: por pouco, policiais federais em missão oficial não foram linchados -
CONFRONTO - Acampamento golpista em Brasília: por pouco, policiais federais em missão oficial não foram linchados (Eraldo Peres/AP/Image Plus)

Formalizada no sábado pela manhã, a demissão de Arruda pavimentou o caminho para o governo. Tomás Paiva, o novo comandante do Exército, convenceu Cid a desistir da chefia do batalhão. “Eu esperava que o Cid fizesse o que ele fez, porque ele tem de se defender. No ano que vem, ele pode comandar outro batalhão ou o próprio de Goiânia”, afirma um general que acompanha de perto o caso. Um importante auxiliar de Lula garante que, com a demissão de Arruda e a anulação da ascensão do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o presidente está menos inquieto com a questão militar. Lula gostou da conversa que teve com o novo comandante do Exército, que pediu um crédito de confiança para despolitizar as Forças Armadas. Na reunião entre eles, o petista acusou militares de terem participado à paisana dos ataques ao Supremo, ao Planalto e ao Congresso. O general Tomás Paiva concordou que há adesão de setores significativos da caserna a Bolsonaro, mas que boa parte deles é legalista.

A escolha do novo comandante, aliás, partiu do próprio mandatário. Ao dizer a auxiliares que não aceitava nem a ascensão de Cid nem a resistência de Arruda para tomar providências contra o tenente-coronel, o presidente elogiou o discurso de Tomás Paiva, feito três dias antes de sua indicação, quando ainda era comandante militar do Sudeste. “Vamos continuar garantindo a nossa democracia, porque a democracia pressupõe liberdade e garantias individuais e públicas. E é o regime do povo, de alternância de poder”, disse o general na ocasião. A auxiliares, o novo comandante argumentou que o discurso não foi pensado como forma de conquistar o cargo e que, dias antes da fala, o próprio general Arruda havia pedido para que os oficiais voltassem a conversar com as tropas em busca de restabelecer os canais de diálogo. Tomás Paiva também mostrou alinhamento com o antecessor dizendo que seria uma temeridade retirar os acampamentos em frente aos quartéis-generais horas depois das manifestações e que Arruda estava sofrendo um processo de “fritura” de maneira injusta. Para ele, os ataques do dia 8 de janeiro foram uma “arruaça” e não podem ser minimizados, mas não tiveram início dentro das Forças Armadas nem resultariam em intervenção militar. Fortalecido após a baderna, Lula agora quer melhorar sua relação com a caserna e usar todo o arsenal jurídico possível para provar que Bolsonaro tem culpa no cartório como mentor do levante. A disposição do presidente sugere que a crise ainda terá muitos capítulos pela frente.

Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826

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