PDT e PSB mostram a força da esquerda que cresce como alternativa ao PT
Lideradas pelos clãs Campos e Gomes, siglas triunfam em quatro capitais nas eleições e dão fôlego à estratégia de uma frente, sem Lula, para 2022
A eleição municipal de 2020 deixou um cenário de terra arrasada para a esquerda, que viu o centro político conquistar a imensa maioria das capitais e avançar no número de prefeituras pelo país. Mas, em meio ao deserto, restou uma espécie de oásis encravado em algumas das principais capitais do Nordeste, defendido por dois partidos que atuam longe do petismo, agora em derrocada, mas que há muito era a principal força desse campo ideológico. A dobradinha PSB-PDT, comandada pelos clãs Campos, em Pernambuco (construído pelo ex-governador Eduardo Campos, morto em um acidente aéreo em 2014), e Ferreira Gomes, dos irmãos Ciro e Cid, no Ceará, passou no teste das urnas e emerge agora como uma força competitiva para 2022.
Embora com as vitórias confinadas ao Nordeste, a aliança pode comemorar a consolidação da parceria na última eleição. As siglas fizeram dobradinhas em oito capitais e, num cenário difícil para a esquerda, levaram duas cada (o PSB ficou com Recife e Maceió, e o PDT, com Fortaleza e Aracaju). Além disso, chegaram em terceiro nos dois maiores colégios eleitorais do país, São Paulo (com Márcio França) e Rio de Janeiro (com Martha Rocha). Na maioria das grandes cidades, ainda rifaram da aliança o PT de Lula e Gleisi Hoffmann, que insistiu na frustrada estratégia de que era preciso defender o legado petista nas urnas. No fim, a legenda que governou o país por treze anos e comandou nove capitais nos áureos tempos do lulismo, acabou sem nenhuma, o pior desempenho de sua história. De quebra, ainda mostrou aos antigos companheiros que, às vezes, é até mais fácil sem o PT. O divórcio ficou bastante exposto no duro embate do Recife. Para superar a prima Marília Arraes (PT), João Campos (PSB), filho de Eduardo, investiu pesado numa cruzada antipetista que incluía cartazes com dizeres “PT nunca mais” e falas como a de que “não cabem em duas mãos os gestores do partido presos”.
Declarações fortes para quem em 2018 apoiou o “Lula livre” e em 2019 encontrou-se com o ex-presidente junto com a mãe, Renata Campos, apontada por aliados e opositores como uma das maiores articuladoras da campanha do filho, uma personagem importante nos passos do clã e a responsável por manter vivo o legado do marido, Eduardo. Militante desde cedo do PSB e pertencente a outra família tradicional da região, a Andrade Lima, Renata sempre foi próxima do prefeito Geraldo Júlio (PSB) e do governador Paulo Câmara (PSB) — os três foram auditores do Tribunal de Contas do Estado — e é vista com ressalvas por uma parte da família Arraes, justamente a que apoia Marília.
Mas o que são esses partidos de esquerda que triunfaram na última eleição? O PSB tem como sua principal vitrine o domínio estabelecido em Pernambuco desde que Eduardo Campos se elegeu governador em 2006. Ele ocupou o cargo por dois mandatos e fez o sucessor, Paulo Câmara, que está na segunda gestão. Além disso, a legenda comanda a prefeitura desde 2013. A influência política da família vem, no entanto, de muito antes. A hegemonia atual foi erguida sobre o legado de Miguel Arraes, avô de Eduardo, que governou o estado por três mandatos e a prefeitura por um. Filho de agricultores do sertão do Ceará, ele se tornou um ícone da política pernambucana ao se firmar como um representante dos trabalhadores das lavouras de açúcar e ao mesmo tempo ter se associado aos patrões usineiros. A capacidade de se equilibrar entre ser de esquerda e lidar com o campo conservador foi uma qualidade herdada pelo neto, que governou praticamente sem ter oposição e conseguiu ser um aliado tanto de Lula, de quem foi ministro, quanto de Aécio Neves (PSDB).
No Ceará, o domínio da dinastia Ferreira Gomes é ainda mais duradouro. Herdeiro político de Tasso Jereissati, Ciro chegou a prefeito de Fortaleza em 1989 e de lá saiu para ser governador, cargo que também foi ocupado por seu irmão Cid, hoje senador. Ajudou a eleger vários prefeitos na capital como o atual, Roberto Cláudio, e o futuro, José Sarto, ambos do PDT. Hoje tido como o maior nome da centro-esquerda, por ter chegado em terceiro lugar na disputa presidencial de 2018, Ciro tem o perfil oposto ao de Eduardo Campos. Um dia depois de eleger Sarto contra um candidato apoiado por Bolsonaro (Capitão Wagner, do Pros), ele já colocou a união da esquerda em risco ao atacar o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), que, segundo ele, “perdeu a noção total da realidade” ao votar usando uma camiseta com a inscrição “Lula livre”. Dino retrucou que não responderia para “não acirrar conflitos desnecessários”. Enquanto o PSB exalta com frequência o nome de Arraes, Ciro, que já passou por seis partidos — incluindo o PDS, herdeiro da Arena, que apoiava os militares —, evoca às vezes o legado de Leonel Brizola, outro ícone da esquerda e fundador do PDT.
Mas os acenos a determinados heróis esquerdistas de outrora podem ser apenas uma cortina de fumaça do novo PDT e do novo PSB. Sem os grilhões do PT — e cada vez mais longe de PSOL e PCdoB —, as lideranças dos dois partidos passaram a vislumbrar a possibilidade de formar uma frente mais ampla com a centro-direita em 2022. “É mais fácil conversar com o DEM e o PSDB do que com o PT. O diálogo de projetos é mais aberto”, afirma o presidente do PDT, Carlos Lupi, que chegou a se reunir mais de uma vez com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para tratar de alianças eleitorais. O presidente do PSB, Carlos Siqueira, foi ainda mais duro: “Entre o PT e o Brasil, o PT sempre preferiu ficar consigo mesmo”. Alguns setores das duas legendas já ventilam até uma fusão, o que resultaria em uma sigla com a maior bancada da Câmara (59 deputados), desbancando exatamente o PT (54). Isso, por ora, é incerto. “Mas a aliança está mais consolidada do que nunca”, disse a VEJA o governador Paulo Câmara, que em 2018 fechou acordo com Lula ainda preso pela Lava-Jato para isolar a candidatura de Ciro, que na ocasião se declarou “miseravelmente traído por Lula e seus asseclas”. Nada, no entanto, como uma nova eleição para cicatrizar as feridas. Na reta final no Recife, Ciro foi à cidade e subiu num caminhão de som para pedir votos a João Campos — a vice dele, Isabella de Roldão (PDT), teve a candidatura descartada para a aliança com o PSB.
O trabalho nos bastidores para que as duas legendas caminhassem juntas no pleito da semana passada foi feito com planejamento e disciplina. Segundo Câmara, depois de 2018, os dois partidos discutiram as estratégias por dois anos, sempre respeitando as peculiaridades de cada estado. “E fizemos alianças vitoriosas. A ideia é repetir em 2022”, afirma. Ciro, evidentemente, já flerta com a possibilidade de ser o presidenciável desse conjunto de forças. Após a vitória de Sarto, ele foi comemorar com muita bebida e poucas máscaras na casa de Prisco Bezerra (PDT-CE), suplente do senador Cid. Em vídeos que foram parar nas mãos da oposição, ele aparece cantando, tendo ao fundo os gritos de “Ciro presidente” dos convivas. Um desastre nos últimos anos em que foi governo federal, a esquerda começa aos poucos a reconstruir uma rota alternativa. Detalhe importante: sem o PT no comando.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716