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As novas denúncias do ex-presidente da ABDI

Demitido após revelar que se recusou a atender a pedidos “não republicanos”, Luiz Augusto de Souza Ferreira fala a VEJA novamente

Por Thiago Bronzatto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Hugo Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h52 - Publicado em 6 set 2019, 06h30

No dia 31 de agosto, quando contou a VEJA que se recusara a atender a pedidos “não republicanos” do Ministério da Economia, o então presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Luiz Augusto de Souza Ferreira, conhecido como Guto, já sabia que seu emprego estava por um fio. Ele travava, fazia meses, um duelo de bastidores com o secretário de Produtividade, Emprego e Competitividade, Carlos da Costa, um dos principais assessores do ministro Paulo Guedes.

Na entrevista publicada no site da revista, Guto disse que era guardião de “bombas” que poderiam detonar o desafeto. Mas citou apenas dois traques — a história de uma compra de passagem aérea e a outra de um aluguel, ambas supostamente irregulares. O restante da munição seria revelado caso ele fosse obrigado a deixar o governo. Na segunda-feira 2, o presidente Jair Bolsonaro entrou no circuito, determinou que fosse feita uma apuração imediata das denúncias e advertiu em tom severo: “Um dos dois ou os dois perderão a cabeça”. Dois dias depois, rolou a cabeça do presidente da ABDI.

Não se sabe o que a apuração oficial constatou — se é que houve alguma apuração oficial. O fato é que Guto cumpriu a ameaça. Segundo ele, os tais pedidos “não republicanos” tratam de assuntos bem mais complexos do que a compra de passagens aéreas ou discussões em torno do custo de um aluguel. Envolvem integrantes do Ministério da Economia em negociatas que teriam o objetivo de beneficiar determinados empresários.

Em nova entrevista a VEJA, o ex-presidente da ABDI cita dois casos em que interesses escusos estariam operando na máquina pública: o projeto do governo para acabar com a tomada elétrica de três pinos e a escolha de uma empresa que ficará responsável pela certificação dos processos digitais do Inmetro. Ambos, segundo Guto, atrelam gigantescos interesses comerciais a financeiros.

Em 2006, o ex-presidente Lula sancionou uma lei que obrigava as indústrias a produzir aparelhos eletrodomésticos com a controversa tomada de três pinos, que seria mais segura. O governo Bolsonaro quer revogar essa lei e mudar outra vez o padrão das tomadas. Guto conta que, embora a ABDI não tenha rigorosamente nada a ver com esse projeto, o secretário Carlos da Costa encomendou ao órgão um parecer que defenda a mudança. “A nota técnica da ABDI daria respaldo à proposta no meio industrial e no Congresso. Obviamente, isso teria um impacto muito grande”, explica o ex-presidente da agência, que se recusou a produzir o documento. “Substituir a tomada de três pinos é o sonho de consumo do Carlos. Depois disso, muita gente vai ficar bilionária no Brasil”, diz ele, insinuando o malfeito, mas sem apresentar provas (veja a entrevista abaixo).

A segunda acusação também envolve o secretário do ministro Paulo Guedes. De acordo com o ex-presidente da ABDI, Carlos da Costa estaria por trás da estruturação de outro negócio estranho e bilionário — a certificação digital. O Inmetro vem desenvolvendo um projeto para combater fraudes nas bombas dos postos de combustível. Guto afirma que a mudança vai beneficiar diversas empresas, entre elas a Cermob Tecnologia, que, segundo sua versão, seria ligada a pessoas próximas ao secretário de Produtividade. Procurado, Carlos da Costa não quis se pronunciar. Em nota, o Ministério da Economia disse que Guto “não apresentou quaisquer provas de ilegalidade” e esclareceu que até o momento não foi detectada nenhuma ilicitude. José Carlos da Silva Neto, sócio da Cermob, diz que o próprio setor de distribuidores de combustível, ao qual presta consultoria, se organizou para implantar a certificação digital. “O setor resolveu trocar todas as bombas de combustível. Se for calculado todo o investimento privado, o valor chega a 8 bilhões de reais”, afirma o empresário, garantindo que não receberá recursos públicos. Ou seja: a acusação de Guto não faria sentido.

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SEM PROVAS – Posto de gasolina: certificação digital do Inmetro seria fraudada (Rivaldo Gomes/Folhapress)

Indicado pelo ex-ministro do Desenvolvimento Marcos Pereira (Repu­blicanos-­SP), Guto Ferreira assumiu a ABDI em junho de 2016. A agência desenvolve projetos nas áreas de inovação e competitividade da indústria brasileira. Após ser convidado para continuar no governo de Bolsonaro, ele passou a prestar contas ao secretário Carlos da Costa. Desde março, no entanto, os dois começaram a se estranhar. O primeiro bate-boca ocorreu quando o ex-presidente da ABDI questionou a intenção do chefe de alugar um espaço em São Paulo ao custo de 500 000 reais por ano. A conta seria paga pela agência, que já tinha um escritório na cidade, sem custo. “O TCU vai engolir eu e você juntos”, alertou Guto Ferreira. “Nunca pedi nem nunca pedirei nada que não seja o correto”, rebateu Costa. As mensagens vazaram, e o secretário começou a suspeitar de seu subordinado.

Em meio à disputa, surgiram dos­siês que envolvem os dois servidores em acusações variadas. Guto, por exemplo, foi acusado de ter ligações com políticos de oposição ao governo. Insatisfeito, o ex-presidente da ABDI relatou a situação ao ministro Paulo Guedes. Pouco tempo depois, ele também reuniu todas as mensagens trocadas com Carlos da Costa, as denúncias, e encaminhou tudo ao ministério. “Falei tudo para o Paulo Guedes”, garante ele. E acrescenta: “Fiquei sabendo que o ministro se encontrou com o presidente Bolsonaro e disse que, se houvesse apuração sobre o caso, ele entregaria o cargo. Não tem sentido não haver apuração, não tem sentido o ministro falar que entrega o cargo”. Se depender do ex-presidente da ABDI, a confusão no posto Ipiranga está longe de acabar. Ele pretende continuar levando adiante essa batalha. “Fiz uma escolha de não baixar a cabeça para vagabundo. Fiz uma escolha de não baixar a cabeça para pedido errado”, afirmou em discurso a funcionários da agência, horas antes de receber a notícia oficial sobre sua demissão. O Ministério da Economia declarou que, após a demissão de Guto, determinou a abertura de uma investigação.


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“Falei tudo para o Paulo Guedes”

Luiz Augusto de Souza Ferreira recebeu VEJA na noite da segunda-­feira 2, minutos depois de ser informado da decisão do presidente Jair Bolsonaro de demiti-lo do comando da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Abalado, sem apresentar provas concretas do que dizia, ele concedeu a seguinte entrevista gravada.

O senhor se arrepende das acusações que fez? Não. Não compactuo com ilegalidades, mas achei tudo muito estranho. O presidente disse que seria feita uma investigação rigorosa antes de tomar uma decisão. Mas não houve investigação alguma. Não fui ouvido, ninguém me procurou. Soube que minha exoneração já foi assinada. Ao que parece, o presidente foi convencido pelos argumentos dos vagabundos. Já fui ao Planalto me despedir dos amigos.

Houve outros pedidos “não republicanos”? Como contei a vocês antes de ser demitido, uma das principais histórias é uma viagem para Dubai. A ABDI tinha um acordo para mandar um funcionário para o fórum de produtividade da OCDE na Austrália. Compramos a passagem, via Chile, para o gerente de planejamento da ABDI. Mas o Carlos da Costa, que também viajaria, exigiu que o trajeto passasse por Dubai, mesmo sendo 7 000 reais mais caro, e queria ficar dois dias por lá ainda que sem uma agenda pre­definida. Ele não entendia por que o governo não tinha de pagar isso a ele. Carlos pediu à área jurídica que alterasse a nota técnica da viagem para que ele pudesse ir a Dubai. Isso é improbidade. Nosso relacionamento ficou difícil.

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Mas o senhor falou em “bombas”, o que irritou o presidente Bolsonaro. A que considero mais grave é um contrato em que o Carlos está envolvido e que trata de uma negociação de 1 bilhão de reais. É um contrato para a nova certificação digital do Brasil via Inmetro. Certificação digital de 600 000 bombas de combustível de carro e de um sistema que, em tese, elimina fraudes. Não houve licitação para celebrar o contrato com a empresa responsável, a Cermob. Há pessoas ligadas ao Carlos da Costa e a outros órgãos do governo que têm interesse em que essa empresa gerencie o trabalho. É uma história muito estranha. Os donos da empresa participam de reuniões mesmo sem nenhum contrato formal com o governo. Isso precisa ser investigado.

O senhor falou em “bombas” no plural. Teve pedido de cargo, teve pedido para encaixar muita gente. Um deles era para contratar a mulher do chefe de gabinete do Onyx (Lorenzoni, ministro da Casa Civil), que recusei. Mas o pior foi o pedido para emitir uma nota da ABDI contra a tomada de três pinos. Mudar esse padrão de tomada é o sonho de consumo do Carlos. Se isso acontecer de novo, muita gente vai ficar bilionária no Brasil. A equipe técnica do Inmetro e a Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia se recusaram a fazer a nota técnica que embasaria a decisão do governo. O Carlos me pediu isso diretamente. Foi uma conversa minha com ele, na sala dele. A nota técnica da ABDI daria respaldo à proposta no meio industrial, no Congresso também.

O ministro Paulo Guedes tomou conhecimento de suas denúncias? Falei tudo para o Paulo Guedes, inclusive essa história do Cermob. Relatei ao ministro o episódio em que o Carlos exigiu que se alugasse um escritório da Secretaria de Produtividade ao custo de 500 000 reais e o caso da viagem a Dubai. O ministro negou que tivesse partido dele a ordem para alugar um novo local para a secretaria. Quando mostrei as mensagens para o Guedes, ele não falou nada. Depois, fiquei sabendo que ele se encontrou com o presidente Bolsonaro e disse que, se houvesse apuração sobre o caso, entregaria o cargo. Não tem sentido não ter apuração, não tem sentido o ministro falar que entrega o cargo.

É fato que o senhor também enviou ao ministro Paulo Guedes mensagens que detalham suas acusações? Eu entreguei o material impresso a uma assessora dele. São quase quarenta páginas de mensagens. Não tem acordo comigo, não tem como aceitar. Também não tem como aceitar que um dos diretores indicados ainda no governo Temer seja réu pelo crime de corrupção. Ele continua lá até agora e virou o melhor amigo do Carlos. Na melhor das hipóteses, quero acreditar muito que o ministro está só protegendo o Carlos. O Carlos está quebrado financeiramente, e o Guedes quis ajudá-­lo, colocando-­o numa secretaria que não faz nada.

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Que avaliação o senhor tem hoje do governo? Eu já havia denunciado as irregularidades para o governo em maio. Mandei uma mensagem para o Marcelo Guaranys (secretário executivo do Ministério da Economia) falando de coisas não republicanas. Tenho todas as mensagens aqui. Eles acham que é normal pedir para ficar dois dias em Dubai ou para alterar um parecer ou pedir uma indicação de alguém para ganhar 35 000 reais sem trabalhar. Acho desanimador. Parece loucura, mas eu acreditava muito mais neste governo. É muito difícil montar um time sério em Brasília, porque a máquina é terrível. A minha impressão real é que o Brasil não vai ter jeito.

Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651

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