Nas sombras, Kassab transforma o PSD no terceiro maior partido do país
Com um estilo discreto, fama de bom articulador e aliado de todos os governos, o político expande a sigla nas prefeituras
Passado o primeiro turno das eleições municipais, ao menos um ponto galvaniza as opiniões dos analistas políticos: os centristas foram os grandes vencedores, sinalizando um possível declínio da polarização entre esquerda e direita que tomou conta do país em 2018. Partidos tradicionais como MDB, PP, PSDB e DEM, todos oriundos das cinzas do bipartidarismo da ditadura militar, colecionaram importantes resultados. Mas há um ilustre intruso na lista. O PSD, sigla que não tem nem dez anos de idade, elegeu 657 prefeitos (quase 12% do total e 20% a mais que em 2016) e será a terceira legenda em número de cidades administradas a partir de 2021 — os emedebistas triunfaram em 780 localidades, e o Progressistas em 686. Por trás dessa ascensão e excelente performance do PSD está o seu “dono”: Gilberto Kassab, um político de pouca visibilidade mas que ganhou espaço no xadrez do poder nacional sendo influente nos bastidores e articulador maleável a ponto de ter se aproximado dos três últimos presidentes — da esquerda à direita, passando pelo centro.
O partido que criou é novo, mas o perfil de articulador vem sendo construído há tempos. No fim da década de 80, a ala paulista do antigo PFL enfrentava uma crise após desistir de lançar o banqueiro Olavo Setúbal ao governo em 1986 e apoiar Paulo Maluf (PDS). A reconstrução se mostrava difícil até o presidente nacional, Jorge Bornhausen, delegar no início dos anos 90 a tarefa ao deputado estadual Gilberto Kassab, que tinha pouco mais de 30 anos. Ao cumprir a missão, filiando nomes como o do futuro senador Romeu Tuma, Kassab impressionou os caciques. Discrição, confidencialidade, fidelidade a acordos, atenção e disponibilidade ao interlocutor são qualidades frequentemente atribuídas a ele até por quem não é seu aliado. “Ele é presente, fala ao telefone com todo mundo e tem uma vantagem importante: você manda mensagem para ele e daqui a meia hora é respondido”, relata o senador Antonio Anastasia (PSD-MG).
A habilidade política, impulsionada pela excepcional capacidade de manipulação de fatos e pessoas, levou Kassab a voos mais altos, como a prefeitura de São Paulo em 2008, mas foi em 2011 que deu um passo decisivo ao criar o PSD diante da ascensão do PT e do declínio de parceiros históricos como o PSDB e o DEM. O partido que nascia, disse em uma declaração célebre, “não seria de direita, nem de esquerda nem de centro”. Tamanha flexibilidade pavimentou o histórico governista da legenda. Depois de aderir a Dilma Rousseff, de quem foi ministro, apoiou o impeachment da petista para depois integrar a base de Michel Temer (MDB), de quem também foi ministro. Após o fracasso nas urnas de Geraldo Alckmin em 2018, o partido embicou de novo em direção ao governo e Kassab se tornou interlocutor do presidente Jair Bolsonaro. Além de um importante quadro, Fábio Faria, ser ministro das Comunicações (e homem forte na articulação), o PSD integra o Centrão, bloco parlamentar que apoia o presidente. Apesar disso, Kassab continua aliado do maior rival de Bolsonaro, o governador paulista João Doria (PSDB), pré-candidato a presidente em 2022, de cujo governo é secretário licenciado da Casa Civil desde o primeiro dia.
Essa condição inusitada mostra outro atributo de Kassab: a capacidade de sobreviver às acusações de irregularidades que acumula na carreira. Ele pediu licença do governo Doria em dezembro de 2018, antes de tomar posse, após uma operação da PF encontrar 301 000 reais em dinheiro vivo em sua casa. Kassab é suspeito de receber 58 milhões de reais ilícitos do Grupo J&F — parte em mesada paga à Yape Consultoria, da qual foi sócio, e parte como repasses a ele e ao PSD para darem apoio ao PT. Apesar da fartura de evidências, Kassab nega tudo e, mesmo com evidentes arranhões de imagem, segue firme como um grande cacique dos bastidores da política.
O desempenho recente nas urnas é um bom trunfo para ele e o PSD no momento em que ganham corpo as negociações para uma candidatura presidencial de centro em 2022. Além dos prefeitos já eleitos, a sigla ainda disputa o segundo turno em dez cidades, incluindo uma capital, Goiânia. Entre as sete capitais que definiram a disputa no primeiro turno, o PSD levou Belo Horizonte, com Alexandre Kalil, e Campo Grande, com Marquinhos Trad, ambos reeleitos com boas votações. A legenda tem como bastiões Minas Gerais (onde Kassab atuou para atrair Kalil e dois senadores), Bahia e Paraná — que somam 23% do eleitorado e abrigam três nomes aventados por Kassab para disputas mais ambiciosas, como o pleito de 2022. “Um primeiro esforço vai ser direcionado à candidatura presidencial própria”, diz ele, citando, além de Anastasia, o senador Otto Alencar (BA) e o governador Ratinho Jr (PR) como quadros próprios que teriam potencial para chegar longe. Mas no meio político — e até dentro do PSD — esse tipo de declaração é visto apenas como um movimento para cacifar o partido. Ou seja, é Kassab fazendo o que sabe: articulando para ganhar espaço no próximo governo, seja qual for ele.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714