Ministério de Lula começa com falas desencontradas e polêmicas
A escolha de auxiliares com base apenas em critérios políticos facilita acordos e arranjos, mas também é um manancial de intrigas e confusão
A terceira temporada do governo Lula inaugurou a maior e mais colorida Esplanada dos Ministérios. Na largada, são 37 pastas formadas com uma composição diferente das anteriores. O PT encolheu, a diversidade aumentou e o simbólico retrato de um time de homens, mulheres, negros, indígenas, cientistas, celebridades e políticos de vários partidos cumpre a prometida formação de uma gestão ampla, uma das principais bandeiras do petista durante a campanha. A escolha do grupo não foi nada fácil. Lula apenas conseguiu concluir o primeiro escalão no penúltimo dia útil do ano, após um complexo quebra-cabeça em que foi necessário encaixar novas peças, deixar outros aliados pelo caminho e abrigar as tradicionais conveniências políticas que permeiam o histórico governo petista — e cujo desfecho, infelizmente, já é conhecido. Resultado: o governo mal começou e, na primeira semana, o que se viu foram trombadas entre ministros, declarações contraditórias com o próprio presidente e muitas polêmicas.
A primeira confusão envolveu a nova ministra do Turismo. Bastou um dia após a posse para que viessem à tona os laços de Daniela Carneiro, conhecida como Daniela do Waguinho, com a milícia da Baixada Fluminense. Deputada federal mais votada pelo Rio de Janeiro, a nova aliada de Lula tem uma relação de proximidade com um famoso chefe miliciano da região, condenado por homicídio. Daniela é casada com Wagner Carneiro, o Waguinho, prefeito de Belford Roxo. Em 2018, conforme mostrou a Folha de S.Paulo, a nova ministra publicou fotos ao lado do miliciano agradecendo a ajuda em sua campanha eleitoral. Na época, o miliciano só estava solto graças a um emprego arrumado pelo prefeito, o que permitia que ele deixasse a prisão para trabalhar. A história, por si só, já teria elementos para questionar a presença da ministra em um governo — qualquer que fosse ele —, mas ganha ares de escândalo quando ocorre numa gestão que promete se contrapor a tudo que o antecessor fez, e não foram poucas as vezes em que Lula e o PT tentaram desgastar o ex-presidente Bolsonaro vinculando-o à milícia carioca.
Daniela do Waguinho não figurava na lista dos principais cotados para comandar o Turismo. A pasta era disputada pelos deputados Pedro Paulo (PSD) e Marcelo Freixo (PSB) — esse último, conhecido exatamente pelo esforço no combate às milícias do Rio, acabou ganhando das mãos de Daniela a Embratur como consolo. A gratidão acabou definindo a pasta, e pesou na decisão o apoio da popular família Waguinho a Lula no segundo turno da disputa — com direito a carreatas e atos pró-PT na região, cujos votos eram dominados por Bolsonaro, que também cortejou a dupla. A aproximação entre o PT e os Waguinho se dá pelo menos desde as eleições de 2020. “Os dois sempre ajudaram muito o PT. Em 2014, na eleição da Dilma, graças a eles, recebemos 73% dos votos na cidade”, afirmou Washington Quaquá, deputado eleito pelo Rio e influente liderança petista no estado.
É natural que os ministérios sejam comandados por políticos, especialmente num governo que se propõe a ser plural e a abrigar diferentes correntes de pensamento. O problema é a falta de critério. No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, as pastas também foram entregues a partidos, mas o presidente, num primeiro momento, não abriu mão de colocar um técnico de sua confiança logo abaixo do ministro para cuidar da parte administrativa e dos principais programas. Depois, por necessidades políticas, os partidos foram autorizados a indicar quem bem entendessem para cargos de segundo e terceiro escalões, além de empresas estatais e autarquias — dádiva que ficou conhecida como “ministério de porteira fechada”. A prática também marcou o segundo governo Lula, foi estendida por insistência dele à gestão de Dilma Rousseff e, como se sabe, resultou em fisiologismo e escândalos de corrupção.
No terceiro mandato, Lula teve de diminuir a supremacia de seu próprio partido para abrigar o apetite de seus aliados e as promessas de cargos, feitas por ele próprio, em troca de apoio a seu governo. Em 2003 havia 21 nomes ligados ao PT na Esplanada, número que caiu para quinze em 2007 e agora chega a dez. As outras estrelas da gestão serão de PSB, PSD, União Brasil e MDB, com três ministérios cada um. Para abrigar todo mundo, Lula ampliou o número de ministérios de 23 para 37, mudou a lei das estatais para permitir a indicação de políticos a determinados postos e ainda tem à disposição 9 000 cargos de livre provimento que podem ser usados como isca para atrair novos aliados. “O número de ministérios está dentro do processo de uma frente ampla. Também é natural o PT ter um número significativo de pastas e a presença de ministros de outros partidos”, disse a VEJA o Secretário-Geral da Presidência, Márcio Macêdo. Indicada pelo União Brasil, Daniela do Waguinho continuava ministra até o fechamento desta edição, o que não deveria ser tão natural assim.
O Ministério de Minas e Energia é outro caso emblemático. Com um orçamento de 9 bilhões de reais, a pasta cuida de assuntos intrincados e extremamente técnicos, como a prometida mudança da política de preços dos combustíveis, a construção e ampliação de refinarias e de estatais como a Petrobras e a Eletrobras. O ministro, por razões óbvias, ganha automaticamente status, visibilidade e influência. Em 2003, Lula entregou a Dilma Rousseff o comando das Minas e Energia. Para a função, foi designado agora o suplente de senador Alexandre Silveira (PSD). Formado em direito, é ex-delegado da Polícia Civil e, em 2004, assumiu o cargo de direção no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). O currículo dele não mostra conhecimento algum na área de energia, óleo e gás, mas os predicados políticos de Silveira foram mais importantes. Braço direito do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o novo ministro foi um dos principais articuladores da campanha de Lula em Minas.
A sopa de ministros rendeu discursos e falas desencontradas. Recém-empossado, o ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT), chegou prometendo criar uma comissão para rever a Reforma da Previdência — no dia seguinte, foi desautorizado por Rui Costa, da Casa Civil, que negou qualquer plano nesse sentido. O próprio Costa, dias antes, havia contrariado Lula, ao dizer que o presidente, que jura que não vai disputar a reeleição, pode tentar um novo mandato em 2026. Alocado na Defesa para pacificar os ânimos com as Forças Armadas, José Múcio evitou questionar os acampamentos montados em frente a quartéis, e chegou a chamar de democratas os manifestantes. Dias antes, o ministro da Justiça, Flávio Dino, havia dito que tais agrupamentos viraram “incubadoras de terroristas”. “A aliança de Lula junta muitos partidos com preferências muito distintas. O problema é que não existe uma agenda em comum”, diz Carlos Pereira, professor da Fundação Getulio Vargas. Bonita na foto, a banda começou desafinada.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823