Lula faz de Paes sua principal aposta para recuperar terreno no Rio
De olho em 2026, o petista prepara estratégia para avançar no berço do bolsonarismo, onde o fantasma do ex-presidente ainda assusta o PT
Além da vitória, as urnas trouxeram alguns recados inescapáveis para Lula, em 2022. Um dos mais contundentes veio do Rio de Janeiro, onde estão a segunda maior cidade e o terceiro colégio eleitoral do Brasil. O estado chegou a conceder ao presidente da República quase 80% da preferência nas eleições de 2006, mas virou à direita nos dois últimos pleitos, com Jair Bolsonaro capturando a maioria dos votos em seu berço político. Mesmo sem poder concorrer a nenhum cargo público por decisão da Justiça Eleitoral, o ex-mandatário deu uma demonstração de força, em abril, ao reunir cerca de 30 000 pessoas na Praia de Copacabana, em seu apoio. Com o espectro bolsonarista a pairar sobre o eleitorado, Lula traçou a estratégia para reequilibrar o jogo: ampliar o diálogo com o centro político e setores moderados da oposição. Para tanto, conta com o apoio do prefeito Eduardo Paes (PSD), antigo aliado e favorito na disputa municipal de outubro.
Nenhuma outra cidade mereceu tanta atenção do presidente quanto o Rio. De fevereiro a abril, ele esteve seis vezes na capital fluminense para participar de entregas de obras e anunciar investimentos. Paes também foi a Brasília negociar a cessão de terrenos da União à prefeitura. “O povo do Rio tem que entender que o presidente Lula é um sujeito absolutamente apaixonado por esta cidade”, discursou Paes, ao inaugurar ao lado do petista o Terminal Intermodal Gentileza, um dos marcos de sua gestão. Os dois costumam se falar semanalmente por telefone e, com frequência, trocam informações por meio de interlocutores. Oficialmente, dizem estar apenas tratando do interesse da população. Nos bastidores, porém, acertaram que o apoio de Lula a Paes mira 2026, quando Lula se lançará à reeleição, enquanto o alcaide deve concorrer ao comando do Palácio Guanabara, caso saia vitorioso este ano. “Não há como derrotar Bolsonaro na terra dele com uma candidatura restrita”, diz Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT. “A aliança com Paes é fundamental para ampliar o arco de alianças.”
O estreitamento das relações da dupla subiu de patamar depois que o governo federal atendeu a uma velha reivindicação do prefeito. Desde fevereiro de 2023, ele cobrava a fatura por ter apoiado Lula no segundo turno da disputa presidencial, demonstrando insatisfação com o fato de a nomeação do coordenador de seis hospitais sob responsabilidade da União não ter passado por sua mesa. Mês passado, Lula cedeu, e o cargo passou das mãos de sindicalistas nomeados pela ministra Nísia Trindade para Teresa Vannucci, que era subsecretária da Saúde da prefeitura e pessoa de confiança do titular da pasta, Daniel Soranz. A escolha serviu também para apaziguar os ânimos dentro do próprio PT em torno das unidades de saúde que haviam sido loteadas entre deputados federais petistas e, juntas, têm um orçamento de 860 milhões de reais previsto para 2024. Em troca, por enquanto, o PSD anunciou apoio à candidatura do deputado federal Dimas Gadelha (PT-RJ), um dos mais descontentes com a situação, à prefeitura de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. “O acordo facilita a conversa com o prefeito, já que pretendemos ter mais espaço em sua chapa”, diz o presidente do diretório municipal do PT no Rio, Tiago Santana.
O sonho de caciques locais é barganhar o apoio presidencial pela indicação de um companheiro como vice de Paes, que lidera todas as pesquisas, com cerca de 40% das intenções de voto. Seria o modo mais fácil de o partido, com alcance limitado ao Rio, herdar a prefeitura daqui a dois anos e, assim, passar a controlar a segunda mais poderosa máquina municipal do país. O prefeito, contudo, já deixou claro que não tem a menor intenção de fazer tal movimento, por entender que suas chances na corrida seriam limitadas caso recebesse dos adversários o rótulo de “candidato de Lula”. O presidente, por sua vez, já deu sinais de que não pretende “colocar a faca no pescoço do aliado” e que qualquer acordo será intermediado diretamente por ele. Lula confidenciou a auxiliares que não pretende mais embarcar em aventuras sem qualquer chance de vitória com a esquerda fluminense — a mais recente costura desse tipo, com o ex-deputado federal Marcelo Freixo ao governo do estado, não chegou nem ao segundo turno.
Elevado à condição de aliado estratégico, Paes aproveita para abocanhar cada vez mais nacos do orçamento federal. Em agosto do ano passado, obteve 1,8 bilhão de reais para recuperar o sistema de corredores de ônibus BRT, principalmente na Zona Oeste, a região mais populosa da cidade. Também recebeu a garantia de que vai abastecer os cofres com a maior parte dos 342,6 bilhões de reais destinados ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O dinheiro será empregado na construção de novos conjuntos habitacionais, escolas e institutos federais.
Na dança incerta, de toma lá, dá cá, a ordem do Planalto é tentar recuperar algum terreno em redutos bolsonaristas, como a Baixada Fluminense e municípios como Japeri, Paracambi, Maricá e Itaboraí. É estrada sinuosa. “A pavimentação para uma frente ampla em 2026, estratégia que deu resultado nas últimas eleições, passa pela disputa municipal, principalmente nas grandes cidades onde a rejeição ao PT é maior”, diz o cientista político Felipe Nunes, do instituto de pesquisa Quaest. Ciente do próprio poderio, Paes vai vendendo caro seu apoio. Lula sabe disso e não dá ponto sem nó, em jogada ensaiada.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893