Os bastidores da aproximação de Lula e Lira em meio ao impasse dos gastos
Se para o presidente eleito a manobra é conveniente no momento, um acordo com o petista também interessa ao homem forte do Centrão
Dois nomes são inesquecíveis ao PT por personificarem malsucedidas articulações políticas dos governos Lula e Dilma Rousseff em eleições à presidência da Câmara, que lhes causaram derrotas retumbantes: Severino Cavalcanti e Eduardo Cunha. O primeiro, conhecido como “rei do baixo clero”, viu-se eleito presidente da Casa em 2005, vencendo Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), candidato apoiado pelo governo em meio a um racha na bancada petista, que teve outro postulante, Virgílio Guimarães (PT-MG). Severino durou apenas sete meses no cargo, derrubado por um escândalo de cobrança de propina de um restaurante da Câmara. Dez anos depois, ao lançar um candidato fraco, Arlindo Chinaglia (PT-SP), contra o “rei do Centrão” Cunha, o governo Dilma viu a vitória do adversário que viria a abrir o processo de impeachment da petista, em dezembro de 2015.
Vitorioso nas eleições, Lula já deixou claro que não pretende repetir esses erros, prometendo que não tentará interferir no processo eletivo da Câmara, em fevereiro de 2023. Além de evitar o esforço de entrar em uma nova batalha do tipo, desta vez contra o favorito Arthur Lira (PP-AL), que está em campanha pela reeleição e é aliado de Jair Bolsonaro, Lula precisa do apoio dele para sua prioridade do momento: garantir neste ano a tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que abra espaço no Orçamento para despesas fora do teto de gastos, principal desafio da nova gestão, sobretudo para financiar a manutenção dos 600 reais do Bolsa Família e o aumento do salário mínimo em 2023.
Se para o presidente eleito a aproximação com Lira é conveniente no momento, um acordo com o petista também interessa ao poderoso congressista alagoano, pois serve para empoderá-lo nas negociações com o novo governo e evitar que o PT se intrometa em suas ambições. Depois de algumas farpas trocadas durante a campanha, na qual estiveram em palanques opostos, Lula e Arthur Lira se sentaram à mesa na residência oficial do presidente da Câmara na manhã da quarta-feira 9. “A reunião demonstra o compromisso do presidente de respeitar e conversar com as instituições, pacificar o país, estabelecer um diálogo”, resume o líder do PT na Câmara, deputado Reginaldo Lopes (MG), um dos presentes.
Nesse primeiro encontro entre eles, precedido por tapinhas nas costas e acompanhado pelos capitães da transição de governo, o vice eleito Geraldo Alckmin (PSB) e o ex-ministro Aloizio Mercadante (PT), Lula sinalizou a Lira sua preferência pela tramitação da chamada PEC da Transição para garantir os recursos às despesas fora do teto de gastos, principalmente manter o patamar do Bolsa Família. A opção pela PEC é apoiada pelo presidente da Câmara e seus aliados, inclusive no atual governo, como o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Alguns políticos do entorno do presidente eleito ainda defendem uma saída alternativa, via medida provisória, mas o cenário ainda está indefinido.
As circunstâncias empurram o novo governo para uma relação pragmática com Lira, que só vem aumentando seu poder na Câmara. Fora o seu partido, com 47 deputados eleitos, o rei do Centrão tem um acordo com Valdemar Costa Neto, presidente do PL, maior bancada da Casa a partir de 2023, com 99 cadeiras, e articula uma federação entre o PP e o União Brasil, que tem 59 — isso para citar apenas os maiores partidos. Lira ainda conta com emissários junto à esquerda para quebrar resistências e conseguir apoios. “Para a governabilidade, é interessante ter uma pessoa como Arthur estabelecendo pactos com o presidente”, diz o deputado Felipe Carreras (PSB-PE), um dos principais encarregados de aparar arestas entre Lira e a esquerda. “Seria um movimento inteligente da base de Lula.”
Para uma parte dos aliados do presidente eleito, no entanto, a equação tem um ponto problemático. Em função da PEC da Transição, eles temem que o novo governo se veja diante de contrapartidas e exigências do Centrão. O contraponto já foi externado abertamente por nomes como o senador Renan Calheiros (MDB-AL) e o deputado federal eleito Eunício Oliveira (MDB-CE), dois próceres da velha guarda do MDB que fizeram campanha para Lula e são fundamentais ao novo governo no Congresso.
Inimigo político de Arthur Lira em Alagoas, Renan tem falado em arquitetar uma “frente ampla” de partidos de centro que dê sustentação ao governo no Congresso, alternativa ao Centrão. Pelas suas contas, seria possível somar 51 senadores e 312 deputados. “É um formato de governabilidade que isolaria os setores que flertaram com o fascismo. Não faz sentido, logo depois da eleição, fazer uma PEC e entregar a Arthur Lira”, diz Renan. Eunício, por sua vez, é um dos nomes cogitados na base lulista como possível adversário do presidente da Câmara. “Naturalmente vão surgir nomes para disputar com Lira. Não tem sentido ele ser apoiado pelo governo”, provoca o cearense. Mas essa hipótese depende de um improvável gesto de Lula de romper a promessa de neutralidade na disputa de 2023. Por isso, um dos desafios é justamente conter os impulsos de Renan contra o rival alagoano.
Em paralelo ao atual namoro de conveniências com Arthur Lira, o futuro governo caminha na tarefa de tentar expandir a todo custo sua base no Congresso. As tratativas avançaram algumas casas em relação a partidos como o MDB, da senadora Simone Tebet, responsável pela parte de Assistência Social na transição, e o PSD, outra sigla com assento garantido no conselho político da equipe. União Brasil e dissidentes do Centrão também estão na mira. As contas pela governabilidade, no entanto, não são tão simples quanto somar o número de deputados de cada partido. MDB e PSD, por exemplo, têm alas bolsonaristas em suas fileiras. No União, o seu presidente, Luciano Bivar, pisca para Lula, também de olho em uma possível candidatura à vaga de Arthur Lira, ao passo que o vice-presidente, Antonio de Rueda, é aliado de Lira.
Fato é que Lula reassumirá o governo em um cenário mais adverso que os de suas gestões passadas, com uma coligação que elegeu apenas 122 deputados, e precisa caminhar ao centro para ampliar sua base parlamentar. Diante do histórico do Centrão e de sua força no Parlamento, o diálogo com Lira, líder do grupo, por mais indigesto que seja para o gosto de alguns companheiros, parece ser o pedágio obrigatório para o novo presidente garantir as principais promessas de campanha e fumar o cachimbo da paz com a Câmara. Como Lula tem repetido, as lições de Severino e Cunha não podem ser esquecidas.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815