Inelegibilidade de Bolsonaro agora anima aliados e preocupa adversários
Apoiadores já discutem abertamente a perspectiva de ele trocar o papel de candidato pelo de cabo eleitoral. Já para o PT, interessa manter a polarização
A primeira reação de Jair Bolsonaro diante da derrota nas urnas foi de choque. Ele sabia que a eleição seria apertada, mas não tinha um fiapo de dúvida sobre a vitória. Passada essa primeira fase, veio a apatia. O presidente se isolou no Palácio da Alvorada, se recusava a despachar com os ministros e aos poucos visitantes que aceitava receber falava em fraude e parecia acreditar que uma reviravolta ainda poderia mudar o resultado — expectativa que durou até meados de novembro quando ele se reuniu com um grupo do qual fazia parte um militar de alta patente. A certa altura do encontro, depois de especulações exaltadas a respeito de uma suposta manipulação de votos e sobre a imparcialidade da Justiça Eleitoral, o militar pediu a palavra e anunciou que naquele instante falaria “de general para capitão”: “Sua missão foi cumprida. Acabou”. A declaração foi interpretada como um aviso de que não havia mais espaço para o presidente questionar o resultado da eleição nem para qualquer tipo de aventura golpista. Depois disso, ainda em estado de negação, Bolsonaro decidiu passar uma temporada nos Estados Unidos.
Cinco meses depois da derrota, o ex-presidente parece finalmente ter ingressado no estágio de aceitação da realidade. Na terça-feira 14, ele participou de um encontro com empresários brasileiros em Orlando, na Flórida, e anunciou que pretende voltar ao Brasil no fim do mês. Pela primeira vez desde que deixou o governo, o ex-presidente falou de sua situação jurídica e admitiu a possibilidade de ser impedido de disputar as próximas eleições. “Infelizmente em alguns casos no Brasil você não precisa ter culpa para ser condenado. Então existe essa possibilidade de inelegibilidade, sim”, disse, se referindo ao processo que tramita contra ele no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ex-presidente não tocou no assunto por mero acaso. Enquanto enfrenta seu autoexílio nos Estados Unidos, no Brasil seus aliados já discutem abertamente a perspectiva de ele trocar o papel de candidato pelo de cabo eleitoral. Mais que isso: muitos apoiadores estão torcendo para que o impedimento do ex-capitão aconteça.
A inelegibilidade é uma hipótese que vem sendo discutida nos bastidores do Poder Judiciário desde meados de 2021. Na época, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Justiça Eleitoral já avaliavam o momento adequado para levar a julgamento ações que pediam a condenação de Bolsonaro por crime de abuso de poder político por supostamente ter se beneficiado de disparos em massa de mensagens durante na campanha de 2018. As provas, porém, eram consideradas muito frágeis — e o processo entrou em estado de hibernação. No ano passado, em uma reunião com diplomatas de outros países, Bolsonaro apresentou o que seriam evidências (falsas) da vulnerabilidade do sistema de votação. O PDT ingressou então com uma nova ação, e é ela que pode deixar o ex-capitão inelegível por oito anos.
Por causa das declarações desastradas diante dos diplomatas, a corregedoria do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) abriu um procedimento para investigar o ex-presidente. O processo ganhou tração nas últimas semanas depois que o corregedor Benedito Gonçalves decidiu aceitar que fossem anexadas aos autos provas que, de alguma maneira, pudessem corroborar a hipótese de crime de abuso de poder político. A evidência mais relevante colhida pelo tribunal é uma minuta encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que permitiria ao governo decretar um bizarro estado de defesa com abrangência restrita ao TSE. Embora aparentemente sem sentido, o documento é considerado importante para demonstrar que, em determinado momento, houve realmente um plano para golpear o resultado das eleições. Torres, preso desde janeiro, prestou depoimento à Polícia Federal sobre o caso na última quinta-feira, 16.
O julgamento ainda não tem data marcada, mas há um esforço visível de quem defende a inelegibilidade para que ele aconteça neste primeiro semestre. Em maio, o ministro Kassio Nunes Marques, indicado pelo ex-capitão ao Supremo, assume uma cadeira de titular no TSE. Três meses depois, o corregedor Benedito Gonçalves, tido como hostil ao ex-presidente, deixará o cargo compulsoriamente. Calcula-se que, com a atual composição, o tribunal aprovaria a inelegibilidade por quatro votos a três. Depois das mudanças, o veredicto é considerado incerto. No campo político, a hipótese de Bolsonaro ser impedido de disputar as próximas eleições tem provocado uma curiosa inversão de expectativas. Há bolsonaristas com pedigree torcendo para que isso de fato aconteça e há petistas da gema preocupados com o cenário que pode surgir a partir dessa decisão.
No PL, partido de Bolsonaro, o tema já é tratado abertamente por Valdemar Costa Neto, presidente da legenda, pelos filhos do ex-presidente e até pelo general Walter Braga Netto, que foi candidato a vice na chapa derrotada. “Se ele estiver inelegível…” já é uma ponderação comum dos dirigentes durante as reuniões para definição de estratégias futuras. A meta do PL é tornar-se a maior agremiação conservadora do país. Com Bolsonaro inelegível, afirma um dos líderes do partido, o objetivo seria alcançado com mais facilidade. A avaliação é que, sem poder se candidatar, o ex-presidente teria mais liberdade para viajar pelo país e mobilizar apoiadores e se consolidar como grande cabo eleitoral, já na disputa municipal do ano que vem.
Representantes de outros partidos de centro com os quais VEJA conversou nos últimos dias compartilham do mesmo raciocínio: com Bolsonaro fora do páreo, candidatos de direita e centro-direita conseguiriam angariar apoios dos diversos espectros políticos — dos eleitores que rechaçam Lula àqueles que têm repulsa ao extremismo do ex-presidente. “O Valdemar acha que, se Bolsonaro estiver inelegível, o apoio dele pode ser até mais forte do que elegível”, resume um parlamentar do PL. “No fundo, quem, como eu, não quer ter de subir nem no palanque do Lula nem no do Bolsonaro torce em silêncio para o Bolsonaro ficar inelegível, porque assim se desobstrui um campo político, permitindo o surgimento de um nome de direita capaz de atrair bolsonaristas, antipetistas e antibolsonaristas que deram a vitória a Lula”, avalia o presidente de um partido sob a condição de anonimato.
Ainda falta coragem aos bolsonaristas para falar abertamente o que pensam sobre esse tema. O PL já encomendou inclusive uma pesquisa para tentar captar as tendências do eleitorado diante desse cenário. Por enquanto, três nomes aparecem como possíveis herdeiros do espólio bolsonarista: os governadores Tarcísio de Freitas (São Paulo), Romeu Zema (Minas Gerais) e, correndo por fora, Ratinho Junior (Paraná). Os liberais também não descartam ter a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro como alternativa. A única certeza é que a família Bolsonaro vai se instalar em Brasília, numa casa que já foi alugada por 12 000 reais, localizada num condomínio de classe média, como revelou o site de VEJA na semana passada.
Pelo lado governista, o provável impedimento de Bolsonaro também gera reflexões. Lula, como se sabe, tem desejo de vingança. Se depender dele, Bolsonaro não só seria considerado inelegível como ainda seria preso. Por outro lado, em um movimento que vai além do revanchismo, interessa ao PT manter a polarização entre o atual e o ex-presidente. “Obviamente, o candidato mais radical é o que menos tem capacidade de ampliar sua base de eleitores. E o Bolsonaro, hoje, é o mais radical. A rejeição dele continua alta e não será reduzida. Ele é, portanto, eventualmente o melhor adversário”, afirma o deputado Washington Quaquá, vice-presidente do partido. Um outro pavor, esse não admitido publicamente, vem da própria Justiça. Petistas, hoje em lua de mel com o TSE e particularmente com o presidente da Corte, ministro Alexandre de Moraes, o arqui-inimigo de Bolsonaro, temem um efeito bumerangue. A política brasileira, afinal, vem sendo marcada por incríveis reviravoltas nos últimos anos.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833