Façam suas apostas
Bolsonaro assume o poder com um discurso pedestre, mas sob um clima generalizado de otimismo, como comprova pesquisa encomendada por VEJA
Empossado como o 38º presidente do Brasil às 15h10 da terça-feira 1º, Jair Messias Bolsonaro, de 63 anos, continua uma incógnita. Em seu primeiro discurso após assumir o cargo, diante dos parlamentares e das delegações estrangeiras, ele enfileirou platitudes, avaliações genéricas e procurou apresentar-se como um conciliador. Em seu segundo discurso, proferido menos de duas horas depois diante de milhares de apoiadores, retomou o populismo raso de campanha e voltou a declarar guerra a adversários reais (como o petismo) e imaginários (como o socialismo) — com direito ao bordão “nossa bandeira jamais será vermelha”. A incógnita não se resume ao perfil que Bolsonaro adotará, mas também se estende ao que seu governo fará. Em seus dois pronunciamentos, que somaram vinte minutos e 1 965 palavras, o presidente não listou prioridades, esqueceu-se de falar do combate à desigualdade, a mazela mais ultrajante do Brasil, e nem sequer mencionou a mãe de todas as reformas, a da Previdência.
Entre os dois discursos, o único ponto de contato ficou no terreno da provocação ideológica. Bolsonaro falou em acabar com “amarras ideológicas”, com “submissão ideológica”, com “viés ideológico” e com “ideologias nefastas”. Não explicou como procederá nessa questão e, até por isso, não afastou as suspeitas de que seu objetivo seja apenas trocar a ideologia de esquerda pela ideologia de direita. Como diz a Carta ao Leitor da edição desta semana de VEJA, “não é do interesse brasileiro — do povo, do país, do Estado — que o governo Bolsonaro continue na mesma marcha beligerante de demonizar uma ideologia só para substituí-la por outra com bússola invertida”.
No campo das relações institucionais, Bolsonaro fez um discurso pobre, mas na direção correta. Ao assinar o termo de posse, com uma caneta esferográfica comum, declarou, fora dos microfones, apontando para os parlamentares: “Tô casando com vocês”. Em seguida, já como parte de sua manifestação oficial, reforçou a corte aos parlamentares: “Aproveito este momento solene e convoco cada um dos congressistas para me ajudarem na missão de restaurar e de reerguer nossa pátria, libertando-a, definitivamente, do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”. Seu apelo faz todo o sentido. Mantido o quadro atual, o PSL, partido de Bolsonaro, terá 52 deputados, cerca de 10% da Casa. Para aprovar projetos, o presidente terá de conquistar votos em outras legendas. Uma montanha de votos. Uma emenda constitucional, por exemplo, requer o aval de 308 dos 513 deputados. O retrato da solenidade de posse não foi animador para o mandatário. O plenário da Câmara não estava lotado. Os presidentes dos partidos com as maiores bancadas não compareceram, inclusive o do MDB, que comandará um dos ministérios mais importantes do governo (Cidadania). Líderes de siglas de médio porte que há tempos negociam seu dote com a nova administração também não prestigiaram a posse. As ausências foram notadas, e, já no dia seguinte ao da solenidade, o PSL, que sonhava disputar a presidência da Câmara, desistiu da ideia e anunciou apoio à reeleição de Rodrigo Maia (DEM), a quem tratava como rival até outro dia.
Apesar de estender a mão aos parlamentares, Bolsonaro pouco falou sobre o que espera deles. Defendeu regras mais brandas para a posse de armas, sem esclarecer quais seriam: “O cidadão de bem merece dispor de meios para se defender, respeitando o referendo de 2005, quando optou, nas urnas, pelo direito à legítima defesa”. Também saiu em defesa, mais uma vez, de policiais envolvidos em operações que resultam na morte de criminosos ou suspeitos. A parte final do discurso foi dedicada à economia. Genericamente, disse que o governo tentará aprovar “reformas estruturantes”, gastará menos do que arrecada e criará um ambiente favorável aos negócios. Tudo temperado com preocupações na seara da ideologia. “Precisamos criar um círculo virtuoso para a economia que traga a confiança necessária para permitir abrir nossos mercados para o comércio internacional, estimulando a competição, a produtividade e a eficácia, sem o viés ideológico.” Poderia nesse trecho ter falado algo sobre os 12 milhões de desempregados, ou a respeito da desigualdade, mas silenciou sobre os dois temas.
Do Congresso, Bolsonaro seguiu para o Palácio do Planalto, onde recebeu a faixa presidencial das mãos de Michel Temer. Era chegada a hora de conversar com o público que estava na Praça dos Três Poderes, falando do alto do parlatório. Tradicionalmente, só o novo presidente discursa de lá, mas a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, posicionou-se no centro do tablado e fez uma manifestação em libras, a linguagem brasileira de sinais. A pedido da plateia, Michelle até beijou o marido, numa daquelas cenas de informalidade que tanto impulsionaram a popularidade do presidente. Quando Bolsonaro assumiu o microfone, falou como o antigo candidato, o radical de direita, exatamente como as massas presentes esperavam. O parlatório se transformou em palanque. “É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil. E me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto.” Isso mesmo: o presidente que recebeu o bastão de Temer declarou que o Brasil vive sob o socialismo.
No trecho de maior sintonia com seu eleitorado, Bolsonaro mencionou a luta contra a criminalidade — bandeira que lhe garantiu apoio eleitoral e mantém sua popularidade em alta. No parlatório, disse que é “urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares”. Dessa forma, pavimentou o caminho para atacar o PT, que será sempre usado como fantasma útil pela nova gestão. O plano é simples: lançar mão do risco da volta dos petistas ao poder para pedir apoio a toda e qualquer iniciativa — e culpar o PT por tudo o que der errado. Bolsonaro criticou a corrupção e a troca de favores políticos e defendeu a meritocracia e a eficiência. Segurando a bandeira do Brasil com a ajuda do vice Hamilton Mourão, encerrou seu discurso com a provocação de sempre: “Essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela”.
No dia seguinte, na quarta-feira 2, um punhado de outros ministros tomou posse procurando ignorar que Michel Temer governou o país por dois anos. O general Augusto Heleno, ao assumir a chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, disse que Dilma Rousseff “derreteu” o sistema de inteligência. Já o novo chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anunciou a demissão de 320 pessoas do ministério com o objetivo de “despetizar” a gestão. Horas antes de anunciar o expurgo, o mesmo Lorenzoni defendeu um “pacto político entre governo e oposição por amor ao Brasil”. O maior partido de oposição é justamente o PT, dono da maior bancada da Câmara e ainda o principal ator no campo da esquerda. O fato de Bolsonaro alternar em seus discursos a conciliação com o sectarismo pode ser uma estratégia. Segundo o cientista político Paulo Kramer, que colaborou com a equipe de transição de governo, o presidente não pode abandonar o figurino de candidato nem descer do palanque.
“Ele simplesmente não pode fazer isso, pois, como optou por queimar a ponte com o presidencialismo de coalizão, precisa manter aceso o sentimento popular para pressionar o Congresso a apoiar a agenda do Executivo”, diz Kramer. Quem conhece o funcionamento do Congresso sabe que, quanto mais o tempo passa, menores são as chances de aprovação de temas polêmicos e impopulares. O presidente empossado tem de aproveitar ao máximo o período de lua de mel que caracteriza o início de mandato. A reforma da Previdência será a primeira e mais desafiadora experiência neste começo de governo. “A Previdência é uma fábrica de desigualdades. Quem legisla tem as maiores aposentadorias, quem julga tem as maiores aposentadorias, e o povo brasileiro tem as menores”, provocou Paulo Guedes em sua primeira manifestação como ministro da Economia. E acertou na mosca.
Alvo de um atentado a faca durante a campanha, Bolsonaro tomou posse protegido pelo maior esquema de segurança da história do país, que envolveu a participação de mais de 10 000 homens das Forças Armadas e de diferentes corporações policiais. Ele desfilou em carro aberto e, durante a programação oficial, usou um colete à prova de balas. A equipe do presidente queria levar para a Esplanada dos Ministérios mais gente do que Lula arregimentou em 2003, quando o petista assumiu o seu primeiro mandato. Não conseguiu. Levantamento do Gabinete de Segurança Institucional indica que 115 000 pessoas foram à posse de Bolsonaro, enquanto 150 000 prestigiaram a ascensão de Lula, segundo estimativa da Polícia Militar feita na época.
Apesar do entusiasmo popular diante do presidente, a posse, como um todo, pareceu um espetáculo menor. Bolsonaro não atraiu mais do que 46 delegações estrangeiras — número ínfimo perto de posses anteriores. O recorde aconteceu com Dilma Rousseff, em 2011, quando 130 delegações estrangeiras desembarcaram em Brasília. Antes de Bolsonaro, a posse menos prestigiada desde a volta da democracia havia sido a de Fernando Collor, que recebeu 72 delegações do exterior em 1990. Para completar o cenário de pequenez, o tratamento dado pelo governo Bolsonaro à imprensa nacional e internacional beirou a grosseria, com a limitação do raio de ação dos profissionais.
Bolsonaro chega ao poder com enorme prestígio popular. Eleito com 57,8 milhões de votos, o segundo melhor resultado obtido num segundo turno desde a redemocratização, atrás apenas de Lula, que conquistou 58,2 milhões de votos em 2006, o novo presidente inspira doses expressivas de otimismo na população, como mostra pesquisa exclusiva feita pela consultoria Ideia Big Data a pedido de VEJA. O instituto ouviu 2 300 pessoas, entre 17 e 20 de dezembro, em 121 cidades de todas as regiões do Brasil. Para 45% dos entrevistados, o ano de 2019 será melhor para o Brasil do que 2018. O porcentual é o maior já registrado desde que a sondagem começou a ser feita, no fim de 2015.
Já 70% dos entrevistados responderam que a vida pessoal neste ano será melhor do que no ano passado. O otimismo se espraia por áreas específicas. Do total de entrevistados, 66% dizem que a economia terá melhor desempenho no ano que se inicia, ante 10% que diziam o mesmo em 2016, quando a presidente Dilma Rousseff administrava a crise que ela mesma semeou. A percepção do mercado é parecida. Na quarta-feira 2, a bolsa brasileira fechou em sua máxima histórica. Segundo a pesquisa da Ideia Big Data, até a política — tema que normalmente não merece nenhuma dose de otimismo por parte do eleitor — será melhor em 2019 do que em 2018, como afirmam 55% dos entrevistados.
Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616