Em delação, hacker da Lava-Jato promete revelar segredos
Acusado de invadir celulares de autoridades conta que há outros envolvidos no esquema
O estudante Luiz Henrique Molição ocupava uma posição secundária na quadrilha de hackers que invadiu os celulares e capturou mensagens trocadas pelos procuradores da Operação Lava-Jato. A tarefa dele era intermediar os contatos entre os criminosos e o jornalista Glenn Greenwald, editor do site The Intercept Brasil, que recebeu e divulgou em parceria com vários veículos de imprensa, inclusive VEJA, diálogos flagrantemente impróprios entre os integrantes da força-tarefa de Curitiba. Preso há dois meses, Molição fechou na semana passada um acordo de delação premiada com a Polícia Federal. Em troca de benefícios, o estudante se comprometeu a revelar, entre outras coisas, o nome de mais três pessoas que teriam participado dos ataques virtuais, apresentar arquivos de conversas privadas de autoridades da República que estariam armazenadas em servidores fora do país e entregar o aparelho celular que usava para se comunicar com os comparsas e repassar as mensagens roubadas.
A Polícia Federal vê a delação de Molição como o primeiro passo para avançar sobre uma das principais linhas de investigação. Desde que eclodiu o escândalo, os agentes desconfiam que, na retaguarda dos hackers, existe uma cadeia de comando que teria planejado e financiado as invasões dos celulares das autoridades, alguém ou algum grupo que tinha interesse em fulminar a Operação Lava-Jato e fragilizar seus protagonistas. Resumindo, suspeita-se que haja um chefe. Durante o inquérito, foram localizadas mensagens trocadas entre os hackers que faziam referência a um tal “professor”. Em sua proposta de delação, Molição contou que o “professor” seria o mentor intelectual e financiador das ações do grupo. O estudante teria ouvido essa revelação da boca de Walter Delgatti Neto, o hacker que foi preso em São Paulo e confessou ser o responsável pela invasão dos celulares dos procuradores da Lava-Jato e de dezenas de autoridades. De acordo com o relato do delator, Delgatti comentou mais de uma vez que recebia instruções do “professor” sobre o que devia e o que não devia ser repassado ao Intercept Brasil
Até então, na versão contada à polícia pelos criminosos o “professor” seria o apelido de Thiago Eliezer Martins, outro hacker da quadrilha que também está preso. Molição disse que o “professor” pode ser outra pessoa. No caso de o tal personagem de fato existir, a PF acredita que poderá identificá-lo com base nas informações armazenadas no celular do estudante. O aparelho, que estava escondido na casa da mãe dele no interior de São Paulo e já vem sendo analisado pelos peritos do Instituto Nacional de Criminalística, foi usado pelos hackers para trocar mensagens dentro do grupo. Molição informou que se encontram guardados no celular todos os diálogos entre ele e Walter Delgatti e entre ele e Glenn Greenwald. O conteúdo dessas conversas forneceria pistas sobre a identidade do tal “professor”.
Em cinco meses de investigação, a Polícia Federal prendeu Walter Delgatti, o Vermelho, suposto líder do esquema, e outras quatro pessoas acusadas de tentar invadir os aplicativos de mensagens de mais de oitenta autoridades da República. Colega de classe de Delgatti no curso de direito da Universidade de Ribeirão Preto, Luiz Henrique Molição entrou no esquema por ser bem informado sobre política e, principalmente, fluente em inglês. Segundo ele, Delgatti precisava de alguém para negociar com o americano Glenn Greenwald as conversas roubadas da Lava-Jato. Em seu primeiro depoimento após a prisão, o estudante disse que o grupo pretendia “vender as informações”, mas que o jornalista “teria se recusado a efetuar qualquer tipo de pagamento em troca de conteúdo”. Ao quebrarem o sigilo bancário dos envolvidos, porém, os investigadores identificaram uma série de transações bancárias que reforçaram a suspeita de que alguém pode ter financiado a operação.
O material obtido pelos hackers tem potencial explosivo e, portanto, alto valor no mercado — e não só em relação à Lava-Jato. A polícia descobriu que os criminosos tentaram — e, em alguns casos, conseguiram — ter acesso a diversos diálogos de autoridades de todos os poderes. Na lista de vítimas dos invasores estão ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. No Poder Executivo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o chefe do Estado-Maior do Exército e ex-interventor na segurança pública do Rio de Janeiro, general Braga Netto, também foram alvo de tentativas de invasão. No Congresso, a lista é extensa — do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Para provar que tinha acesso às contas de aplicativos de autoridades e tentar fazer dinheiro junto a eventuais interessados em pagar pelas informações, Delgatti enviava cópias de mensagens roubadas ou imagens dos celulares mostrando que as contas de determinadas pessoas haviam sido capturadas. Foi assim que, em maio deste ano, o hacker entrou em contato com a ex-deputada federal Manuela d’Ávila, do PCdoB, para oferecer as mensagens dos procuradores da Lava-Jato. O material, prometeu ele, resultaria na libertação do ex-presidente Lula. Delgatti também dizia ter acessado as contas de Eduardo e Carlos Bolsonaro, filhos do presidente. Manuela se interessou e promoveu a aproximação do criminoso com o jornalista. Nesse hiato entre o oferecimento e a entrega do material, Molição entrou em cena.
Por ser monoglota, Delgatti teria desistido de intermediar ele mesmo os contatos com Greenwald. Por isso, repassava a Molição, pelo celular agora em poder da PF, as orientações sobre o que devia ser negociado. Foi em algumas dessas conversas que o estudante teria ouvido o comparsa mencionar o “professor”, o que ele entendeu como uma referência a alguém que operava em escala hierárquica superior. A suspeita sobre a existência de um comando acima dos hackers presos já havia ganhado força quando se soube que, logo após as primeiras prisões, diversos advogados, alguns ligados a partidos políticos e outros a escritórios caros e famosos, se apresentaram para defender os criminosos. Tão logo Delgatti foi apanhado, Molição escreveu a Greenwald: “O menino foi preso”. Pouco tempo depois, ele recebeu um e-mail em uma conta que havia sido criada pelo grupo para burlar possíveis interceptações da polícia: “Você deve saber quem eu sou. Eu ajudava o garoto”. No fim da mensagem, havia a informação de que os advogados dariam “assistência a Walter (Delgatti)”. Molição não sabe quem foi o remetente. Cerca de um mês após a prisão de Delgatti, porém, ele também recebeu uma ligação de Brasília. Apavorado, não atendeu. Em seguida, chegou uma mensagem de WhatsApp de uma pessoa que se apresentava como advogado do Delgatti e que queria saber detalhes de um veículo do hacker preso. A família de Molição foi procurada no interior de São Paulo por supostos advogados que ofereciam seus serviços.
Em sua proposta de colaboração, Molição confirma que o grupo realmente invadiu as contas de aplicativo e recolheu mensagens de várias autoridades da República, bem como de juízes e procuradores que atuaram na Operação Lava-Jato. O material, segundo ele, está armazenado em nuvens localizadas em servidores fora do Brasil. Ele confirmou que se trata de conversas altamente comprometedoras, com potencial de chamuscar determinadas biografias e até de fulminar outras. Em contrapartida à colaboração, o estudante pediu que sua prisão fosse revogada e que ele fosse poupado de eventual denúncia na Justiça. Preso na carceragem da PF em Brasília, com problemas de saúde e enfrentando questões familiares complexas, Molição, ao contrário dos outros acusados, não estaria envolvido em crimes de estelionato nem teria recebido vantagem alguma para participar do esquema de invasões dos telefones. Por isso a Polícia Federal deu sinal verde para o acordo. O Ministério Público ainda está analisando o pedido de imunidade.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662