CPI: Embate com militares elevou a temperatura política a níveis perigosos
Comissão no Senado acerta ao fazer um inventário sobre omissões do governo durante a pandemia, mas se precipita nas acusações de corrupção
Instalada em abril passado com o propósito de apurar eventuais omissões no combate à Covid-19, a CPI da Pandemia começou a ganhar tração ao reunir fatos, ouvir testemunhas e recolher evidências que sugerem que o governo, por erro, negligência ou ação direta, pode ter contribuído para ampliar a crise sanitária provocada pelo coronavírus. Às vésperas de uma eleição presidencial, um inventário apontando o presidente da República como responsável direto ou indireto por mais de 500 000 mortes já seria uma arma de enorme potencial de destruição. Durante as investigações, porém, surgiram indícios de corrupção no Ministério da Saúde. Os parlamentares de oposição vislumbraram uma trilha ainda mais promissora, que até agora não rendeu provas concretas de irregularidades, mas levou a comissão a um pesado embate com os militares. Na terça-feira 13, o senador Renan Calheiros, relator da CPI, defendeu a convocação do general Braga Netto, ministro da Defesa, para depor sobre supostas ilegalidades no processo de compra de vacinas. A temperatura subiu.
A poucos metros do Congresso, num poderoso gabinete do Palácio do Planalto, um importante auxiliar do presidente da República acompanhava pela televisão a sessão da CPI no momento em que o senador falava sobre a necessidade de chamar o ministro da Defesa para depor. “Parece que eles realmente decidiram esticar a corda”, disse o assessor, que, na sequência, passou a simular um cenário, hipotético, segundo ele. “O que aconteceria se o Braga fosse convocado e não comparecesse?”, especulou. “A Polícia Federal vai bater na casa do ministro da Defesa para levá-lo à força?” Após um silêncio no gabinete, o assessor continuou seu raciocínio: “E se, na hora de conduzi-lo, o general estiver acompanhado de alguns seguranças armados de fuzil? Você imagina o que poderia acontecer?…”. “E o que poderia acontecer?”, perguntou o interlocutor. Antes de dar a resposta, o auxiliar ponderou que não havia possibilidade de a crise entre a CPI e os militares evoluir a esse ponto, até porque, apesar da fricção, estavam em andamento negociações para evitar a convocação do general Braga Netto.
Na quarta-feira 7, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), disse que “fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”. O senador fez o comentário depois de ouvir de um informante da comissão que alguns coronéis que participavam das negociações sob suspeita recebiam ordens diretas do então ministro-chefe da Casa Civil, Braga Netto, que ocupou o cargo até março deste ano. Por essa teoria, o general estaria diretamente envolvido num esquema de corrupção que os senadores acreditam que foi criado no Ministério da Saúde para beneficiar uma empresa privada que intermediou a venda de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin. O envolvimento do general empurraria o caso para dentro do Palácio do Planalto, mais precisamente para a antessala de Jair Bolsonaro. Pelo lado político, é o que os senadores oposicionistas mais desejam. O fato é que até agora não existe uma mísera prova concreta que sustente essa teoria — o que abriu caminho para um pesado, preocupante e desnecessário embate retórico entre o Congresso, os militares e o próprio presidente da República.
A reação dos militares veio por meio de uma nota conjunta assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro.” Na sequência, o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr., concedeu uma entrevista ao jornal O Globo. Perguntado sobre se era uma ameaça o trecho da nota que diz que os militares não aceitariam ataques levianos, respondeu que era apenas “um alerta”. E arrematou: “Nós não enviaremos cinquenta notas para ele (Omar Aziz). É apenas essa”. No mesmo dia, o almirante Almir Garnier, chefe da Marinha, endossou as palavras do colega por meio de um tuíte em que dizia que “nos momentos de festa ou de dor, os militares estarão sempre unidos, em prol do povo brasileiro”. O comando da CPI entendeu o conjunto das mensagens como uma ameaça. “Não estou interessado em saber o humor de militar. Eles não vão aceitar o quê? Se tiver que investigar general por corrupção eles vão fazer o quê? Vão mandar me matar? Vão dar um golpe?”, disse Omar Aziz a VEJA. “Não podemos ter medo de arreganhos, de ameaças, de intimidações, de quarteladas”, emendou Renan Calheiros, ao reforçar o pedido de convocação de Braga Netto. Como se diz no jargão político, a corda esticou.
No embalo, fiel ao seu estilo de jogar gasolina em incêndios, o presidente Bolsonaro chamou a cúpula da comissão de “os três patetas”, acusou o senador Omar Aziz de ter desviado recursos da Saúde quando foi governador do Amazonas e, ao ser indagado sobre um pedido de informações que lhe fora encaminhado pelos senadores, respondeu com um impropério. Longe dos holofotes, e com a temperatura cada vez mais quente, os personagens envolvidos na encrenca finalmente perceberam que ninguém tem muito a ganhar com o acirramento dos ânimos e deram uma chance à sensatez. O comandante do Exército, general Paulo Sérgio de Oliveira, um dos signatários da nota do Ministério da Defesa, conversou por telefone com o presidente da CPI. Aziz e Oliveira se conhecem há anos. O general foi comandante da 12ª Região Militar, que inclui o Amazonas, quando o parlamentar era governador do estado. O tom da conversa foi ameno e o teor, absolutamente diplomático — e, ao que parece, produziu bons resultados.
Pelo lado do governo, sem alarde, o presidente Bolsonaro determinou que os senadores Flávio Bolsonaro, o Zero Um, e o governista Marcos Rogério (DEM-RO), titular da CPI, entrassem em campo para evitar que, instados por Calheiros e Aziz, os senadores aprovem o requerimento de convocação do general. Para que os dois lados fiquem bem, a missão dos parlamentares é transformar a convocação do ministro em convite. Se isso acontecer, o general poderá marcar a data e a hora do seu depoimento e comparecer se quiser. Se for convocação, é diferente. Caso não compareça, a comissão poderá solicitar a condução coercitiva do ministro da Defesa — hipótese em que a polícia poderia buscá-lo onde estivesse, inclusive no Palácio do Planalto, e o levaria à força ao Congresso Nacional. Era exatamente sobre esse cenário que o assessor de Bolsonaro citado no início desta reportagem divagava enquanto assistia à sessão da CPI. Antes de encerrar a conversa, o auxiliar havia perguntado ao interlocutor o que ele achava que aconteceria diante da possibilidade de ocorrer tal impasse. “Pode ter certeza que vai dar m…!”, ele mesmo concluiu. O Brasil não precisa disso, mas de paz e ponderação.
Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747