Como o STF pretende reagir à pressão bolsonarista pelo perdão ao 8 de Janeiro
Se prosperar no Congresso, a ofensiva dos parlamentares por anistia vai esbarrar num poderoso arsenal jurídico preparado pelo Supremo

Desde que deixou o Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro promoveu quatro grandes manifestações de rua, num esforço para exibir força política. O roteiro, em geral, é o mesmo: de cima de um trio elétrico, mobiliza apoiadores, recita passagens bíblicas, se diz alvo de perseguição e clama por um gesto de pacificação nacional, utopia que seria alcançada por meio de um perdão aos “inocentes”, como ele prefere chamar os vândalos que invadiram e depredaram as sedes do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no dia 8 de janeiro de 2023.
No domingo 16, o ex-presidente subiu mais uma vez num carro de som para o último ato antes de a Justiça decidir se ele responderá ou não a processo por conspirar contra a democracia. “Eu vou ser um problema para eles, preso ou morto”, bradou. O prenúncio de confusão tem sua primeira parada na proposta de anistia em tramitação no Congresso. Se aprovada, ela concederia perdão a quem financiou os ataques e participou direta ou indiretamente deles, abrindo caminho para a passagem de um bonde que, num futuro próximo, pode ter como passageiros o próprio ex-presidente (embora Bolsonaro jure que não está advogando em causa própria), os generais acusados de tramar um golpe de Estado e até os tais kids pretos que planejaram matar autoridades.
A impunidade ampla para os que participaram da barbárie do 8 de Janeiro parecia apenas uma proposta descabida defendida pelos apoiadores mais radicais do ex-presidente. Puxada por Bolsonaro, porém, ela ganhou tração nos últimos dias. Aliados do capitão propagam que já haveria votos suficientes para aprovar a anistia, pressionam parlamentares, buscam ajuda internacional, criam rankings de apoios e tentam convencer a cúpula do Congresso de que chegou a hora de erguer a bandeira do perdão. Ainda não parece uma tarefa fácil, mas já não é mais tratada como impossível. O projeto foi apresentado em novembro de 2022 — antes dos ataques do 8 de Janeiro — para poupar de punições os caminhoneiros que fecharam estradas em protestos contra a vitória eleitoral de Lula. Na época, Bolsonaro vivia um luto pela derrota, mantinha-se recluso no Palácio da Alvorada e, segundo a Polícia Federal, tramava com os militares um golpe de Estado. Após a baderna em Brasília, a proposta foi modificada, em 2024, e passou a beneficiar os manifestantes que foram presos, processados e condenados pelos atos.

Pelo projeto, serão perdoados os crimes de golpe de Estado e afins, restringindo as eventuais punições a quem danificou o patrimônio público, o que, na prática, resultaria em condenações a penas menores, que poderiam ser cumpridas longe dos presídios. Dois anos depois do ensaio de ruptura democrática, 481 pessoas foram condenadas por crimes como tentativa de abolição do Estado democrático, golpe, associação criminosa armada e deterioração de patrimônio, com penas que variam de três a dezessete anos de reclusão. Outros 542 acusados admitiram o crime e fecharam acordo com o Ministério Público para pagar multa e prestar serviços à comunidade. “Há um consenso de que não deve haver impunidade em relação às depredações, mas também não se deve enquadrar o que aconteceu como golpe de Estado. Maluquice não derruba governo”, afirma o deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), relator do projeto, que estava ao lado de Bolsonaro no ato de domingo no Rio de Janeiro.
O consenso a que o relator do projeto se refere surge de casos como o da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. Ela foi presa preventivamente há dois anos por ter escrito com batom os dizeres “Perdeu, mané” na estátua que representa a imparcialidade da Justiça brasileira. A frase tinha sido dita pelo atual presidente do STF a um manifestante bolsonarista após as eleições de 2022. Segundo o ministro Alexandre de Moraes, a “periculosidade social” de Débora justifica a manutenção da prisão até o seu julgamento, previsto para começar na sexta-feira 21. Já o empresário Marcelo Fernandes Lima, que ficou conhecido por furtar uma réplica da Constituição e exibi-la como um troféu aos vândalos que invadiram o STF, foi condenado a dezessete anos em regime fechado. Ele surrupiou o documento, mas o devolveu dias depois. Por conta de casos assim, até parlamentares governistas admitem que há exageros nas punições aplicadas pelo Supremo, tornando uma incógnita a real dimensão de apoio ao projeto.

Hoje, apenas os partidos claramente identificados com a esquerda e a direita têm posições definidas sobre o perdão, o que no jogo político transfere pressão para os cerca de 300 votos de legendas de centro, uma massa aberta a negociações e que evita comparecer aos atos pró-anistia. Durante a manifestação de domingo, Bolsonaro anunciou, por exemplo, que Gilberto Kassab, presidente do PSD, teria garantido apoio à causa, mas a realidade é que a bancada do partido na Câmara, que tem 44 parlamentares, está rachada sobre o tema. O Republicanos, igualmente com 44 deputados, também não tem uma posição fechada, embora parte considerável dos deputados tenha sinalizado endosso à proposta. “Já há uma pressão popular. Nas ruas, as pessoas pedem para aprovar a anistia. Todo mundo acha que é uma injustiça e que essas pessoas não mereciam essas penas tão severas”, afirma o senador Ciro Nogueira, presidente do PP e ex-ministro de Bolsonaro. “O que aconteceu nesse período não foi pouca coisa. As pessoas têm que ser responsabilizadas por isso”, rebateu a nova articuladora política do governo, ministra Gleisi Hoffmann. O PT garante que a proposta não avançará.
Para monitorar os votos, o PL, partido de Bolsonaro, criou um ranking virtual que atualiza diariamente a posição dos 513 deputados — até o fechamento desta edição, 209 congressistas constavam como favoráveis ao projeto, que precisa de 257 votos para ser aprovado. Certos da vitória, os bolsonaristas pressionam o presidente da Câmara, Hugo Motta, a pular etapas e levar o projeto diretamente ao plenário nos próximos dias. Questionado por VEJA, ele garante apenas que o andamento do projeto será submetido à vontade dos líderes partidários. Outra possibilidade em estudo é retomar a proposta de instalar uma comissão para debater o tema. Em outras palavras, a proposta pode entrar em pauta na semana que vem, no próximo mês, no segundo semestre ou nunca. Especula-se até que os líderes partidários podem decidir votar a anistia quando Hugo Motta estiver fora do país e as sessões passarem a ser conduzidas pelo vice-presidente Altineu Côrtes (PL-RJ), fiel escudeiro de Bolsonaro. Procurado, o deputado não confirma nem nega a possibilidade. “Tudo pode acontecer”, diz, misterioso.

Os bolsonaristas garantem que contam com o apoio inclusive da Casa Branca. Na terça-feira 18, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) se licenciou do mandato depois de um pedido do PT para que a Justiça apreendesse o seu passaporte e instaurasse um inquérito por uma suposta conspiração dele com Donald Trump para atentar contra o Estado brasileiro e o ministro Alexandre de Moraes. Instado por Moraes, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, demorou a se manifestar sobre a ação, e Eduardo, que estava nos Estados Unidos, preocupado com o que poderia acontecer, decidiu ficar por lá e cogita pedir asilo político. “Eu estou falando de vocês, os psicopatas que prenderam mães de família, idosas, trabalhadores e todo tipo de pessoa comum inocente. Irei abraçar esse sacrifício com entusiasmo, focarei 100% do meu tempo nessa única causa: fazer justiça, criar um ambiente para anistiar os reféns de 8 de janeiro e demais perseguidos que fizeram parte do governo Bolsonaro, que estão pagando o preço da crueldade de um psicopata que sonha em prender Jair Bolsonaro”, afirmou. Horas após o anúncio do deputado, Gonet rejeitou o pedido apresentado pelo PT e o caso foi arquivado. A decisão transformou o exílio num gesto sem sentido do ponto de vista prático, mas o filho Zero Três do ex-presidente deve seguir na sua campanha no exterior, aumentando o tom de críticas ao STF.
O Supremo, por sinal, é a grande barreira na batalha pelo perdão. Enquanto parlamentares ligados ao ex-presidente buscam acelerar o projeto de anistia, no STF a convicção é de que todo esse esforço é absolutamente inútil. Os ministros avaliam que a chance de sucesso de uma anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro é zero. No próximo dia 25, não por coincidência, o tribunal começa a julgar a parte mais sensível da denúncia da trama golpista. Tudo indica que a Corte vai transformar em réus Bolsonaro e os militares e abrir caminho para impor ao grupo penas que podem chegar a quarenta anos de cadeia. É nítida entre os magistrados a convicção de que não existe espaço para condescendência. Pelo contrário. O STF tem um arsenal de teses jurídicas para inviabilizar qualquer tipo de perdão aos condenados. A ampla maioria do tribunal, por exemplo, considera inconstitucional a clemência por golpe de Estado ou tentativa de abolição do Estado democrático de direito. Esse ponto é crucial para o futuro dos réus porque é exatamente a combinação desses dois crimes que tem imposto aos baderneiros as penas mais pesadas.

Para frear outras investidas, ministros também pretendem deixar claro nos julgamentos que o que aconteceu no dia 8 de janeiro se equipara ao terrorismo, crime que, pela Constituição, também não pode ser perdoado. Além disso, a anistia ampla articulada pelo Congresso, argumentam, poderia incentivar a desobediência a decisões do Judiciário, violando a separação de poderes e afrontando cláusulas da Constituição que não podem ser modificadas. “É constrangedor falar em anistia para quem quer que seja quando esse grupo é acusado de tramar assassinato de ministro do Supremo e do presidente da República. Seria uma contradição absurda. Aqui não tem bobo da corte”, diz, sob reserva, um dos ministros, ressaltando que perdoar Bolsonaro, os militares ou mesmo aqueles que foram usados como massa de manobra poderia ser entendido como um salvo-conduto para outras incursões contra a democracia.
Alvos de ataques praticamente diários durante os quatro anos do governo Bolsonaro, ministros do Supremo até admitem nos bastidores que as penas impostas aos golpistas foram exacerbadas, mas o espírito de corpo praticamente sepulta as chances de uma reversão das sentenças mais duras. Até janeiro deste ano, 94% dos casos julgados aplicaram punições que variaram entre treze e dezessete anos de prisão. Os primeiros condenados até apresentaram recurso, cabível quando a decisão não é unânime, mas o ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos, arquivou todos. Às vésperas da sessão de julgamento que deve colocar Bolsonaro e a antiga cúpula militar no banco dos réus, a movimentação de setores do Congresso em favor da anistia é interpretada pelos ministros como um movimento defensivo do ex-presidente e, ao mesmo tempo, um teste de força para tentar voltar às urnas em 2026. O instituto da anistia prevê a anulação de condenações penais, mas não inclui as infrações eleitorais que tornaram Bolsonaro inelegível. Essa seria uma outra batalha a ser travada pelo ex-presidente.
Embora o Congresso já tenha aprovado no passado um projeto feito sob medida para livrar um senador de ser punido por crime eleitoral, o cenário hoje é outro. Na época em que isso aconteceu, o Supremo disse que o Legislativo tinha competência constitucional para promover a anistia, mas agora o tribunal avalia que, para reverter a punição imposta ao ex-presidente, a alternativa seria o próprio STF aceitar um recurso para restaurar os direitos políticos dele, o que não vai acontecer, ou, mais factível, uma alteração na Lei da Ficha Limpa, reduzindo o período de inelegibilidade ou banindo o abuso de poder do rol de crimes que levam à suspensão dos direitos políticos. O problema ainda maior para o capitão, sem dúvida, é a acusação de golpe. Sem armas jurídicas para fazer frente ao Supremo, Bolsonaro já precificou o futuro status de réu, deu ordens a seus apoiadores para não baixarem a guarda e planeja ampliar as manifestações em prol da anistia. Diante de uma derrota quase certa nos tribunais, o capitão investe mais do que nunca no embate político. Independentemente do sucesso da batalha pelo perdão, a campanha é útil para tentar manter aliados e eleitores em estado permanente de mobilização, no momento em que o cerco da Justiça se fecha em torno dele.
Publicado em VEJA de 21 de março de 2025, edição nº 2936