Como a esquerda tenta se livrar do ex-presidente Lula
Até o próprio PT busca uma forma de convencer o ex-presidente de que seu tempo passou, mas ele insiste em continuar se colocando na condição de protagonista
Os partidos de esquerda há muito teorizam sobre a oportunidade de testar uma estratégia eleitoral que já deu certo em alguns países: unir forças para derrotar um adversário comum. Foi essa perspectiva que levou muita gente a festejar um encontro do ex-presidente Lula (PT) com seu ex-ministro Ciro Gomes (PDT) — ocorrido há dois meses, mas só revelado recentemente — como se fosse o início de um projeto nessa direção. A conversa entre eles seria um sinal de reaproximação de dois líderes que se afastaram depois do embate das eleições de 2018. Mais: indicaria, inclusive, que Lula estaria disposto a abrir mão do projeto hegemônico e até da candidatura presidencial petista para apoiar um aliado na próxima disputa presidencial. Em suma, estaria se materializando uma chapa encabeçada por Ciro tendo Lula como vice para enfrentar Jair Bolsonaro em 2022. O problema é que isso não passa de uma miragem. O ex-presidente é dono de algumas qualidades políticas, mas a magnanimidade não é uma delas.
As eleições deste ano são uma prova disso. Setores importantes do PT defendiam a ideia de que o partido abrisse mão de candidaturas em capitais e grandes municípios em favor de postulantes de legendas de esquerda, como o PSB, o PDT e o PSOL. O intuito dessa ala era não disputar, por exemplo, as prefeituras do Rio e do Recife. Não deu certo. Sob influência de Lula, o comando partidário decidiu lançar o maior número de candidatos a prefeito, com o objetivo de defender não só o legado da sigla, mas principalmente a biografia e os feitos governamentais de seu maior líder. A ordem pode até ajudar na recuperação da imagem do ex-presidente, que ficou um ano e sete meses preso, mas até agora não rendeu frutos em colégios eleitorais importantes. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, os candidatos do PT estão, segundo as pesquisas, fora do segundo turno. “O Lula hoje é o nosso caudilho. Nenhuma decisão das alianças políticas passa sem a autorização dele. É uma subserviência total. O PT é governado quase que por um papa. Enquanto isso continuar assim, as derrotas continuarão no horizonte”, diz um integrante do partido que, por razões óbvias, pede para não ter o nome revelado.
A opção pela defesa do legado partidário desgasta a relação com aliados. Na capital pernambucana, a deputada petista Marília Arraes está na segunda colocação e, apertada por outros dois concorrentes, tenta chegar ao segundo turno. Se conseguir passar de fase, ela enfrentará o deputado João Campos, do PSB, que lidera o páreo e deveria ter contado, desde o início da campanha, com o apoio do PT, não fosse a intervenção de Lula e da direção partidária. “A posição do PT sempre foi de exclusivismo. Nestes anos de democracia, nos momentos cruciais, o PT não ficou com o país, ficou com ele próprio e com as suas conveniências”, afirma Carlos Siqueira, presidente do PSB. “Há uma visão autoritária e exclusivista que acha que só o PT pode ser o representante da esquerda, que acha que fora da igreja não há salvação. Que igreja é essa?”, pergunta Siqueira.
O PDT também trata como algo menor o encontro entre Ciro Gomes e Lula. Na prática, não há quem acredite na possibilidade de o PT abrir mão da candidatura presidencial em nome do ex-ministro. Em 2018, diante do fortalecimento da candidatura de Jair Bolsonaro, expoentes da esquerda e até estrelas petistas trabalharam pela desistência da candidatura de Fernando Haddad e pela formação de uma aliança em torno de Ciro Gomes. O ex-presidente vetou a iniciativa. No segundo turno, Ciro se negou a fazer campanha por Haddad e viajou ao exterior. Deu-se início, então, à pancadaria fratricida. Os petistas batiam sem dó no ex-ministro, que reagia à altura. É dessa época a célebre frase “O Lula está preso, babaca”, proferida pelo senador Cid Gomes, irmão de Ciro. Hoje, o PDT mantém conversas com o PSB, com quem fechou parcerias em oito disputas em capitais, e até com o DEM, legenda que tenta costurar uma candidatura presidencial de centro (veja a reportagem na pág. 38). Por enquanto, uma aproximação com Lula não faz parte do projeto — a não ser, é claro, que ele ceda a cabeça da chapa.
Entre esquerdistas, há quem defenda uma saída à la Cristina Kirchner. Na Argentina, a ex-presidente desistiu de lançar candidatura própria para ser vice na chapa do peronista Alberto Fernández, que no passado foi um crítico do kirchnerismo. A dúvida é se Lula toparia algo semelhante. “Seria um gesto de extrema grandeza”, afirma Carlos Lupi, presidente do PDT. Ele, no entanto, não acredita nessa possibilidade. “Acho pouquíssimo provável o PT apoiar alguém que não seja um deles. Eu não luto mais. Já vieram me dizer que eu estou dividindo. Eu não estou dividindo nada, estou constatando. Se houve alguma eleição em que eles apoiaram alguém de outro partido em alguma cidade importante do planeta, me fala”, declara Lupi. Ao deixar a prisão, em novembro do ano passado, Lula tinha planos grandiosos. A médio prazo, derrubar a condenação por corrupção e a consequente inelegibilidade, o que ainda depende de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A curto prazo, percorrer o país e mobilizar as massas, ação que teve de ser adiada, segundo seus aliados, em razão da pandemia de Covid-19.
Um dos defensores da formação de uma frente de esquerda na eleição municipal, que seria viabilizada com o PT abrindo mão de certas candidaturas, o deputado Alexandre Padilha (SP) alega que essa ideia não prosperou porque, com o fim das coligações nas eleições proporcionais, os partidos se viram obrigados a lançar o maior número de candidatos. Ele ponderou que Lula sempre trabalhou pela união de forças da esquerda e que, em 2022, o PT não precisará ser necessariamente protagonista. Então, qual é o papel do ex-presidente no jogo? Padilha responde: “A força do PT vem do Lula. Tinha gente que falava que o Pelé tinha acabado na Copa de 70”.
Lula ainda é um político popular. Mas é também um ex-presidiário, condenado a 26 anos de cadeia, artífice e beneficiário de um dos mais impressionantes esquemas de corrupção já descobertos. Em seus dois governos e nos dois de sua sucessora, Dilma Rousseff, empresas estatais foram saqueadas em bilhões de reais. O dinheiro roubado engordou os cofres de empreiteiras amigas do PT, subornou parlamentares e enriqueceu políticos e dirigentes partidários. Apesar dos recursos jurídicos que podem até anular os processos do ex-presidente, esse roteiro revelado pela Operação Lava-Jato é indelével. É um peso que Lula levará consigo aonde quer que vá, tóxico a ponto de contaminar e comprometer quem dele se aproxime. Só Lula parece não perceber isso — ou faz de conta que não percebe, e insiste em tentar continuar enrolando a plateia.
Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712