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Com indulto e embate entre Defesa e STF, Bolsonaro abre mais uma crise

Presidente investe em novo confronto institucional, criado sob medida para mobilizar apoiadores, arrastar militares para a política e tumultuar eleições

Por Reynaldo Turollo Jr., Diogo Magri Atualizado em 4 jun 2024, 12h10 - Publicado em 29 abr 2022, 06h00

Com a proximidade das eleições, que têm tudo para ser as mais disputadas e problemáticas da história recente, o cenário de polarização entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se consolida, como indicam as pesquisas, e ganha elementos de uma crescente radicalização por parte do atual mandatário. Nos últimos dias, Bolsonaro e seus aliados pisaram mais fundo rumo ao perigoso abismo antidemocrático, atacando em duas frentes: no perdão concedido ao deputado Daniel Silveira e no embate entre o Ministério da Defesa e o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. Juntas, essas investidas acabam servindo à mesma velha e conhecida estratégia do ex-capitão de jogar fumaça nos problemas reais do país, a exemplo da inflação recorde e do desemprego, e tentar fragilizar o Judiciário, atingindo por tabela a apuração da eleição, organizada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Embalado por esse comportamento beligerante, Bolsonaro jogou mais gasolina na chama da guerra com a Justiça e arrastou novamente os militares para o debate político dentro do campo mais perigoso possível, o dos ataques à confiabilidade do sistema eleitoral — tudo isso a cinco meses do pleito.

arte Redes

A má notícia é que a nova peleja entre os poderes tende a se arrastar até outubro. Primeiro, porque o presidente prefere brigar a governar, habilidade pela qual não nutre nenhum gosto ou vocação. Depois, porque ele entende que tal estratégia lhe traga votos. Para piorar, o desfecho em torno do indulto a Silveira não será rápido. Como se sabe, o deputado foi condenado pelo Supremo a oito anos e nove meses de prisão por ameaçar ministros da Corte e incitar a violência contra as instituições. Vários partidos de oposição questionaram a constitucionalidade do ato, alegando desvio de finalidade, em seis ações que serão relatadas pela ministra Rosa Weber — e ela já avisou que levará a decisão ao pleno do Supremo. Mas isso só acontecerá se o caso for pautado pelo presidente Luiz Fux. Assim, não é possível dizer ainda se a graça concedida por Bolsonaro é constitucional, se ela já está valendo ou se só terá efeito a partir do trânsito em julgado da sentença, contra a qual ainda cabe recurso.

O mais provável — e sábio — é que o STF não decida nada antes da eleição. O entendimento é que fazer isso agora, em meio à escalada de tensão entre os poderes, alimentaria o discurso de que o presidente é perseguido pela Justiça, gerando novos desgastes do Supremo e uma maior instabilidade para o país. Apesar do sentimento de cautela dentro da Corte, é inevitável que apareça no meio do caminho a controvérsia sobre se o deputado pode ou não disputar o pleito, o que terá de ser avaliado pelo STF e depois pelo TSE. Como tudo conspira a favor da crise, em agosto, quando o TSE se debruçar sobre o tema, estará sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes, odiado pelo bolsonarismo e relator da ação contra Silveira no STF. Ou seja: o circo continuará montado.

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O alvoroço deve mesmo se prolongar porque Bolsonaro mostra disposição infinita para tal confronto. Na quarta 27, ele reuniu Daniel Silveira e deputados da base no Salão Nobre do Palácio do Planalto para uma solenidade de assinatura do decreto de indulto e voltou a disparar contra o STF ao dizer que há autoridades que “podem muito, mas não podem tudo”. Também repetiu que “joga dentro das quatro linhas da Constituição”, uma referência que faz com frequência ao Supremo. “Quem estiver jogando fora, é nossa obrigação trazê-­los para dentro das quatro linhas”, declarou. O evento, batizado de “ato cívico pela liberdade de expressão”, teve transmissão ao vivo pela TV Brasil.

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A dobradinha Planalto-base aliada também gerou uma iniciativa classificada como “deboche” pela oposição: o PTB indicou Silveira para ser titular da Comissão de Constituição e Justiça, um dos principais colegiados da Câmara, responsável por analisar a viabilidade jurídica de projetos que tramitam na Casa. Na mesma quarta, sob protestos, ele assumiu a função. No dia seguinte, o presidente voltou à carga, dizendo que a apuração dos votos costuma ser feita numa sala secreta do TSE (o que é mentira) e sugeriu que as Forças Armadas façam neste ano uma apuração paralela.

PROVOCAÇÃO - Silveira e Bolsonaro: ato de solidariedade na sede do governo -
PROVOCAÇÃO - Silveira e Bolsonaro: ato de solidariedade na sede do governo – (Evaristo Sá/AFP)

Como sempre ocorre na era Bolsonaro, a estratégia do tumulto é guiada por um cálculo político — na verdade, um cálculo digital, na expectativa de conquistar likes e engajamento nas redes. Em menos de uma semana, o indulto dado a Silveira gerou 1,45 milhão de postagens no Facebook, no Instagram e no Twitter, sendo 52% delas favoráveis à medida, segundo levantamento feito pela Quaest Consultoria com exclusividade para VEJA. Ainda que parte desse montante venha de robôs, a empresa conclui que o presidente “conseguiu mobilizar sua base aliada de forma efetiva, protagonizando o debate”. Outro estudo, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da FGV, que também se dedica a estudar o comportamento das redes, identificou que o caso ocupou 11,24% das menções no Twitter entre os perfis de direita — o pico de tuítes (100 000) foi às 18 horas do dia 21, quando saiu o decreto. O tom das menções mostrava que o discurso enviesado do presidente sobre a defesa da liberdade de expressão e a tentativa de fixar a pecha de autoritário no STF colaram entre o seu público e embasaram a maioria das mensagens (veja o quadro).

POLÊMICA - Barroso: declaração acirrou a crise entre o governo e o Supremo -
POLÊMICA - Barroso: declaração acirrou a crise entre o governo e o Supremo – (Nelson Jr./SCO/STF)
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A nova série de ataques ao STF ganhou impulso após um seminário promovido por uma universidade alemã no domingo 24, com a presença do ministro Luís Roberto Barroso. Na ocasião, ele disse que as Forças Armadas “estão sendo orientadas” a atacar o processo eleitoral. Ainda que tenha sido bem-intencionada, a declaração não pegou bem, algo reconhecido depois até dentro do STF. Em nota dura, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, classificou a fala como uma “ofensa grave”. Uma ironia é que foi o próprio Barroso quem levou as Forças Armadas para dentro do processo eleitoral ao convidar os militares para integrar a Comissão de Transparência do TSE em 2021. No início deste ano, no entanto, a coisa desandou quando o general Heber Portella, membro da comissão, fez vários questionamentos sobre as urnas ao TSE. Bolsonaro usou isso para dizer em live que o Exército havia identificado “dezenas de vulnerabilidades” (mais uma mentira do presidente). Apoiadores passaram então a disseminar pelo Telegram mensagens sobre as supostas fragilidades.

REAÇÃO - Paulo Sérgio: o ministro da Defesa viu “ofensa grave” contra os militares -
REAÇÃO - Paulo Sérgio: o ministro da Defesa viu “ofensa grave” contra os militares – (Alan Santos/PR)

Em meio à crise, e acertadamente, o Supremo decidiu submergir. A interlocutores do STF, Barroso tem dito que suas falas foram tiradas de contexto. De fato, o ministro afirmou que existem tentativas de politização das Forças Armadas, mas ressalvou que, nos últimos 33 anos de democracia, elas foram “uma instituição de onde não veio notícia ruim”. Mesmo assim, a mensagem caiu mal entre diferentes setores militares, de acordo com altos oficiais que conversaram com a reportagem de VEJA, na condição de anonimato. Na opinião de um deles, causou profundo incômodo que as declarações tenham sido dadas em um evento no exterior, o que teria prejudicado a imagem da instituição lá fora. Mas os oficiais buscaram minimizar os impactos do episódio nas relações entre as Forças Armadas e o Supremo, dizendo considerar que as afirmações de Barroso refletem uma visão pessoal dele. Destacaram também que militares são legalistas e defendem saídas institucionais para as crises.

O problema adicional é que não se sabe mais onde acabam as Forças Armadas e onde começa o governo. Ao responder a Barroso, o general de quatro estrelas Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira falava como ministro, mas ele é também o mais alto superior hierárquico das Forças Armadas, abaixo apenas de Bolsonaro. Outro integrante da ala militar instalado no Palácio do Planalto, o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria-Geral da Presidência, também rebateu o ministro. “Eleições democráticas e transparentes fazem de nós um país soberano, por isso, nossas Forças Armadas estarão sempre vigilantes”, escreveu em rede social, como gosta o bolsonarismo. Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, também cutucou. “As Forças Armadas, convidadas para participar do processo eleitoral, estão sendo orientadas, como sempre, a ajudar a lisura do evento”, escreveu — o post teve 45 000 curtidas, 10 000 compartilhamentos e quase 1 000 comentários.

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UM PRA LÁ, OUTRO PRA CÁ - Luiz Fux e Bolsonaro: nova crise entre poderes pode chegar até a eleição -
UM PRA LÁ, OUTRO PRA CÁ - Luiz Fux e Bolsonaro: nova crise entre poderes pode chegar até a eleição – (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Os militares participam hoje do governo como em nenhum outro momento desde a redemocratização. Segundo o Tribunal de Contas da União, o número de cargos saltou de 2 765, em 2018, no governo Michel Temer (MDB) para 6 157 em 2020. Destes, mais de um terço está em postos comissionados e, evidentemente, prefere continuar na posição a ser rifado por um novo mandatário. Detalhe: não satisfeito em tê-los por perto, o presidente cobra fidelidade. Ele mudou em três oportunidades o ocupante do posto de comandante do Exército, algo inédito até na ditadura (1964-1985). Na primeira vez que o fez, há um ano, substituindo Edson Pujol por Paulo Sérgio, deflagrou uma crise que culminou na saída do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e dos comandantes da Aeronáutica e da Marinha. Assumiu o ministério o general Walter Braga Netto, que nessa condição esteve ao lado do presidente quando ele ameaçou descumprir ordens judiciais e alimentou discursos golpistas nos atos de 7 de Setembro. Hoje, é cotado para vice na chapa da reeleição.

PEDRA NO SAPATO - Moraes: chance de ser algoz de Silveira também no TSE -
PEDRA NO SAPATO - Moraes: chance de ser algoz de Silveira também no TSE – (./STF)

Além da origem em comum, o ex-­paraquedista Bolsonaro promove tamanha mistura entre governo e militares também de olho em dividendos eleitorais. Pesquisa Datafolha de setembro de 2021 apontou as Forças Armadas como a instituição mais confiável para a população, com uma taxa de 76%. Para quem acompanhou a debacle da ditadura e a péssima imagem que eles tinham nesse período, trata-se de uma nova realidade. “O desgaste dos políticos não atingiu os militares, que ficaram às margens com uma imagem ‘técnica e apolítica’”, avalia o historiador e professor da UFF Daniel Aarão Reis. Do outro lado, no mesmo levantamento do Datafolha, o trabalho do Supremo foi apontado como regular por 35% e ruim ou péssimo por 35% dos entrevistados pelo Datafolha em setembro. “Os ministros do STF atual se expõem mais do que no passado, o que os deixa mais vulneráveis, com divisões internas mais aparentes”, diz Maria Tereza Sadek, cientista política da USP e especialista em Judiciário.

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PLANO - Braga Netto: ida a ato antidemocrático e provável vice de Bolsonaro -
PLANO - Braga Netto: ida a ato antidemocrático e provável vice de Bolsonaro – (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

O histórico de envolvimento das Forças Armadas com a República vem desde a sua proclamação, quando o Exército ajudou a encerrar o Império e emplacou os dois primeiros presidentes: os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. No episódio mais recente, e de profundo impacto na história do país, os militares promoveram o golpe que depôs João Goulart e deram início ao mais longo regime autoritário do Brasil, que duraria 21 anos e foi um desastre em termos econômicos. “A sociedade brasileira atingiu um nível de complexidade que não permite a repetição de um golpe nos moldes de 1964”, acredita Aarão Reis. O ex-ministro da Defesa no governo Dilma Rousseff — e à época comunista — Aldo Rebelo concorda. “Minha relação com os militares era tranquila. O que mudou foi a intenção de Bolsonaro de usá-los como aparato político”, entende.

A grande interrogação é sobre se Bolsonaro deseja imitar exemplos bem-sucedidos que transformaram regimes democráticos em autoritários, como os de Viktor Orbán na Hungria e Vladimir Putin na Rússia, ou copiar Donald Trump, que estimulou a invasão do Capitólio, sede do Congresso americano, depois que perdeu a eleição para Joe Biden. Trump, vale lembrar, serviu de espelho para Bolsonaro na trajetória até o Planalto, tanto pela agenda de direita quanto pela estratégia de alcançar popularidade por meio das redes sociais. A relação entre a cúpula bolsonarista e o ex-estrategista da Casa Branca Steve Bannon, que persiste até hoje, é apontada como um dos fatores que contribuíram para a vitória em 2018. E não custa lembrar, o filho do presidente Eduardo Bolsonaro priva da intimidade do clã Trump e, de forma bem evidente, reproduz seus passos nas aparições em seminários religiosos e radicais. Em resumo: num cenário de vitória do inimigo, o temor de alguma tentativa de ruptura é real.

MOBILIZAÇÃO - Ato bolsonarista em São Paulo: pregação do presidente encontra eco nas rede sociais -
MOBILIZAÇÃO - Ato bolsonarista em São Paulo: pregação do presidente encontra eco nas rede sociais – (Alexandre Schneider/Getty Images)
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Embora tenha atingido sua base, a estratégia de Bolsonaro não teve tanto sucesso no sentido de pautar o debate eleitoral (e as próximas pesquisas dirão se isso ajuda mesmo a trazer votos). Alguns presidenciáveis, como Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB), reagiram. Mas o seu principal rival, Lula, preferiu a discrição. Após cinco dias em silêncio, disse apenas que a crise entre poderes “não é normal”, que Bolsonaro foi “estúpido” ao conceder o indulto e que fez isso para aparecer — e mudou de assunto. Aliados do presidente que mantêm uma distância prudente dos radicais, como o Centrão, também preferiram o silêncio. Líderes como Ciro Nogueira (PP) e Valdemar Costa Neto (PL), por exemplo, não foram ao evento com Daniel Silveira no Palácio. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-­AL), apenas fez chegar ao STF o entendimento de que a cassação de um mandato parlamentar é prerrogativa do Congresso. Lira também não deve fazer prosperar iniciativas de deputados bolsonaristas como Carla Zambelli (PL-SP), que pretendem estender a anistia a outros “criminosos políticos” alvos do STF, termo que serve para abarcar a turma vitriólica, como o ex-deputado Roberto Jefferson, os blogueiros Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio e o agitador Marcos Antônio Gomes, conhecido como Zé Trovão.

RADICAIS - Jefferson: governistas querem ampliar anistia a presos pelo STF -
RADICAIS - Jefferson: governistas querem ampliar anistia a presos pelo STF – (@blogdojefferson8/Instagram)

Insuflado o tempo inteiro pelo bolsonarismo radical, o clima de polarização supera hoje o de 2018, quando o então candidato do PSL e Fernando Haddad, do PT, ficaram com 75% dos votos no primeiro turno. No último pleito, o capitão triunfou apostando forte no antipetismo e nas pautas de costumes. Na eleição deste ano, porém, há diferenças preocupantes, a começar pelo fato de Bolsonaro largar em desvantagem. Além disso, ele não é mais um projeto fake de outsider. Tem o comando das Forças Armadas e o apoio de generais encastelados no poder. Por fim, é chefe de um poder em disputa aberta com o STF. O país e suas instituições, que já provaram a sua resiliência diante de devaneios golpistas, precisarão mostrar — mais uma vez — a sua maturidade diante da perigosa marcha promovida pelo presidente.

Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787

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