Bruxarias oficiais
A bisbilhotice de órgãos como a Receita Federal e a Abin ressuscita o fantasma do patrulhamento ideológico e da perseguição política
Extinto oficialmente há quase trinta anos, o Serviço Nacional de Informações (SNI), braço da ditadura que espionava e perseguia adversários do regime, deixou discípulos. No governo de Fernando Collor, que decretou o fim da agência, espiões sem função definida passaram a zanzar pelos gabinetes de Brasília, farejando escândalos que pudessem comprometer o então presidente. Collor foi cassado num processo de impeachment dois anos depois da posse. Itamar Franco, o substituto, teve sua intimidade exposta por escutas ilegais instaladas em seus telefones. O programa de privatização do governo Fernando Henrique quase naufragou depois que foram divulgadas conversas de ministros, captadas clandestinamente por arapongas da então Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), órgão que sucedeu ao SNI. Mais tarde, ainda durante o governo tucano, descobriu-se que a então recém-criada Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que substituiu a SAE, continuava bisbilhotando a vida de pessoas consideradas hostis ao governo. No rol, os suspeitos de sempre: procuradores, jornalistas, políticos e movimentos sociais.
Os escândalos envolvendo espiões e espionagem política clandestina também atravessaram os governos do PT. Logo nos primeiros meses da gestão Lula, agentes da Abin foram pilhados tentando identificar servidores do Palácio do Planalto que teriam vazado informações confidenciais para a imprensa. Anos depois, um diretor da agência foi demitido quando se descobriu que conduzia uma investigação secreta — e ilegal — envolvendo políticos, jornalistas, empresários e juízes considerados inimigos do partido. O espírito persecutório do velho SNI, como se vê, sobreviveu à redemocratização. E o mais preocupante: os sinais emitidos pelo governo do presidente Jair Bolsonaro até aqui permitem concluir que a doutrina e os métodos do “serviço” estão de volta. Em outras palavras, o que for entendido como uma ameaça pode ser alvo do olho grande do aparato estatal. Na surdina, esse trabalho já começou.
No domingo 10, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma reportagem em que relata a preocupação do Palácio do Planalto com o Sínodo sobre a Amazônia, um evento da Igreja Católica que reunirá bispos em Roma, em outubro, para discutir problemas como a devastação da floresta, a situação dos povos indígenas e as alterações climáticas da Terra. Acendeu-se a luz amarela. Para a Abin, o cardápio do evento reproduz uma “agenda de esquerda” e deverá ser usado pelo “clero progressista” da Igreja Católica para criticar o presidente Bolsonaro e desgastar a imagem do governo em nível internacional. A conclusão, segundo a reportagem, consta nos relatórios produzidos pela agência. Neles, a Igreja Católica é classificada como “braço do PT” e candidata a assumir o papel de liderar a oposição contra o governo. Conclusão dos arapongas: é preciso neutralizar isso aí.
Em 2005, durante o governo do ex-presidente Lula, espiões da Abin monitoraram a ONG inglesa Rainforest Foundation, criada pelo cantor Sting. Em um relatório classificado como “confidencial”, os agentes levantaram suspeitas sobre um projeto de reflorestamento desenvolvido pela entidade em terras indígenas do Pará. “Esta ONG estaria angariando dinheiro com discurso ambientalista”, diz o documento. Em maio de 2015, no governo Dilma, os agentes relatam que a WWF e o Greenpeace estariam incentivando os protestos de indígenas e populações ribeirinhas com o objetivo de impedir a construção de hidrelétricas “por aspectos ideológicos”.
A paranoia dos serviços de inteligência com questões que envolvem a Amazônia perpassa todos os governos, como se vê. Mas a perseguição motivada por ideologia — seja de esquerda, seja de direita — é uma violação constitucional. “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”, disse o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a quem a Abin está subordinada. Em nota, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou que o Sínodo para a Amazônia é “uma celebração da Igreja para a Igreja”. Foi um protesto sutil. Dom Evaristo Spengler, bispo de Marajó, disse ao Globo que monitorar a Igreja “é um retrocesso que só vimos na ditadura militar”.
Diante da má repercussão, o general Heleno negou que a Igreja Católica seja alvo de qualquer ação de espionagem. Ao assumir o comando do GSI, em janeiro, o general anunciou que uma de suas prioridades era remodelar a agência. “Informação é poder. Se você tiver informação, você aumenta o seu poder”, disse. A Abin está ampliando sua rede de captação. A ideia é instalar postos de inteligência em todos os ministérios, autarquias e empresas estatais. Oficialmente, a capilaridade seria útil para que a agência tivesse informações abrangentes e pudesse acompanhar os projetos do governo. O modelo lembra as Divisões de Segurança e Informações (DSI) do SNI. Cada órgão tinha a sua — e ela servia basicamente para promover intrigas ou para identificar e perseguir adversários do regime. “Não tem nada a ver com DSI”, esclarece o ministro Augusto Heleno. “Seria a capacitação de um sistema de inteligência que já existe.” De janeiro até hoje, quase uma dezena de funcionários da Abin já foi designada para ocupar postos em vários ministérios.
A ministra Damares Alves, dos Direitos Humanos, “um antro de petistas” segundo um ministro do governo, nomeou como seu secretário executivo Sérgio Carazza, ex-diretor do departamento de telemática da agência. Na pasta da Agricultura, o oficial de inteligência Christian Schneider foi designado assessor especial da ministra Tereza Cristina. Ele diz que a sua missão é reunir informações técnicas do setor, ajudar na relação da pasta com o Congresso e, caso seja necessário, auxiliar na triagem de nomeações de funcionários para órgãos públicos. No Palácio do Planalto, o ministro da Secretaria-Geral, Gustavo Bebianno, nomeou o ex-diretor da Abin Wilson Trezza para a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Nos primeiros dias de governo, Bebianno e Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil, receberam um dossiê apócrifo com nomes, funções e ligações políticas de funcionários que trabalham no Planalto. O documento serviu de base para o início do processo que foi chamado de “despetização” do governo. De imediato, foram demitidos 320 funcionários. Cada um deles, depois, foi submetido a entrevistas para eventual recontratação. Os candidatos que ocupavam os cargos antes de 2016 — ou seja, que haviam trabalhado com os petistas Lula e Dilma Rousseff — foram sumariamente eliminados.
Para o velho SNI, jornalistas também eram adversários do regime. Não há nada que indique que a nova Abin pense dessa maneira, mas o braço do serviço de inteligência está interferindo no trabalho da imprensa. “Agora é um triângulo: o jornalista pede entrevista, a gente comunica ao GSI, o GSI informa a Comunicação e a Comunicação nos informa”, diz Carlos Manato, secretário especial da Casa Civil. A determinação, em tese, se deve a um protocolo de segurança criado durante o governo Temer. VEJA consultou esse protocolo. Nele, não está escrito em nenhum lugar que o GSI precisa ser avisado, muito menos que tem de autorizar a movimentação de jornalistas. Essa obrigação confere um poder de controle ao GSI que só encontra precedentes antes da redemocratização. O fantasma do autoritarismo não ronda apenas a Abin. Em sua última edição, a coluna Radar, de VEJA, revelou que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e sua mulher, Guiomar Feitosa Mendes, foram citados em um documento da Receita Federal como suspeitos de praticar “possíveis fraudes de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência”. Além deles, foram mencionados dez familiares, incluindo a mãe do ministro, morta em 2007. Era uma clássica bruxaria. Em nota, a Receita admitiu que houve uma apuração fiscal preliminar, mas que não investiga os crimes citados no documento, até porque não tem competência legal para isso. “Isso é coisa de Gestapo, de Estado policial, produto da falta de controle sobre braços criminosos dentro do aparato estatal”, protestou o ministro. A corregedoria da Receita anunciou que vai apurar quem são os responsáveis pela elaboração e pelo vazamento do relatório.
O ministro do Supremo não foi o único alvo escolhido pela Receita. Em março de 2018, auditores fiscais produziram um documento reservado com diretrizes para a “identificação de indícios de crimes contra a ordem tributária, corrupção e lavagem de dinheiro ou ocultação de bens envolvendo agentes públicos”. Em março do ano passado, a Receita selecionou um grupo de 134 contribuintes “relevantes”. Gilmar Mendes integrava essa lista. Sobre os demais, sabe-se apenas que todos eles são “agentes públicos”. A Receita pode — e deve — analisar a situação fiscal de qualquer contribuinte, independentemente da função ou cargo que ocupa. Mas, tal como a Abin, não pode selecionar alvos preferenciais. O procedimento, em tempos passados, foi usado como arma para intimidar desafetos do governo.
O presidente Bolsonaro também deu um mau exemplo institucional. Antes de deixar o hospital, onde se submeteu a uma cirurgia para retirada da bolsa de colostomia, gravou um vídeo instando a Polícia Federal a apresentar o resultado da investigação do atentado que ele sofreu durante a campanha. “Espero que nossa querida Polícia Federal tenha uma solução para o nosso caso nas próximas semanas. Esse crime, essa tentativa de homicídio, esse ato terrorista, praticado por um ex-integrante do PSOL, não pode ficar impune. Gostaria que a PF indicasse, obviamente com dados concretos, quem foi, ou quem foram os responsáveis por determinar que o Adélio [Bispo de Oliveira] praticasse aquele crime lá em Juiz de Fora”, disse. A cobrança pública gerou desconforto entre os delegados do caso. Eles vislumbraram nas declarações de Bolsonaro uma pressão indireta para que a conclusão do inquérito caminhe alinhada à convicção do presidente — que não tem dúvida de que a facada foi resultado de uma conspiração política armada pelo PSOL.
Com reportagem de Laryssa Borges e Marcelo Rocha
A outra bruxaria
Hugo Marques e Thiago Bronzatto
A foto acima foi tirada em fevereiro de 2017. O então juiz Sergio Moro está ao lado de dois amigos: os empresários Rafael Ghignone (de camisa quadriculada) e Fábio Aguayo (de camisa preta), dirigentes do Sindicato das Empresas de Gastronomia, Entretenimento e Similares de Curitiba (SindiAbrabar). Nas pontas, vestidos com terno e gravata, estão Renato Araújo Júnior (à dir.) e Leonardo Cabral Dias (à esq.), ambos funcionários do Ministério do Trabalho na época. Esses dois últimos, Moro só conheceu na hora de bater a foto. O grupo participava de uma festa para comemorar a obtenção do registro oficial do sindicato depois de anos de tentativas. A imagem, postada desde então no Facebook do sindicato, vai ser usada para sustentar uma bruxaria contra o agora ministro da Justiça. Uma tramoia está sendo articulada por um grupo de advogados e políticos — e terá como protagonistas os personagens engravatados que aparecem na fotografia.
Cerca de um ano depois da festa, Renato Araújo e Leonardo Cabral foram presos pela Operação Registro Espúrio, acusados de participar de uma quadrilha criminosa que cobrava propinas para fraudar processos de registros sindicais no Ministério do Trabalho. Araújo confessou o crime. Confirmou que, de fato, havia um grupo de funcionários que agilizavam os registros sindicais mediante pagamento de propina. Já Cabral, apesar das evidências que a polícia colheu, se declara inocente e vítima de perseguição. Por que seria perseguido? A trama contra Moro começa a partir dessa resposta. Cabral diz que o registro do SindiAbrabar só foi deferido depois de intervenção direta de Moro.
O SindiAbrabar, comandado por Fábio Aguayo, o anfitrião da festa, tentava regularizar a entidade havia cinco anos no Ministério do Trabalho. O processo estava parado. Foi quando Sergio Moro teria ligado para o ministério, pedindo em favor do amigo a Cabral, que coordenava o setor de registros sindicais. O ex-servidor conta que a carta de autorização foi concedida logo depois. É difícil até tentar imaginar que o juiz responsável por uma gigantesca investigação de corrupção no país tenha pegado um telefone, ligado para Brasília e usado o peso de seu nome para pedir um favor a um grupo criminoso.
VEJA tomou conhecimento da história insólita por meio de um amigo de Cabral. Segundo ele, um grupo de parlamentares prepara a armadilha para constranger Moro. O plano é o seguinte: o ministro seria convocado para falar sobre o seu pacote anticorrupção no Congresso. Durante a audiência, seria instado a se explicar sobre suas ligações com a quadrilha de fraudadores que agia no Ministério do Trabalho — e a foto seria mostrada como evidência de sua relação com os criminosos. O depoimento de Cabral entraria como a prova mais consistente do crime. E a amizade com o sindicalista daria a motivação.
Procurado por VEJA, Cabral disse que falou com Moro, mas se recusou a dar detalhes. “É melhor deixar isso aí como uma carta na manga, porque existem muitas outras coisas”, desconversou. Cabral, advogado, é dono de uma extensa ficha policial, que inclui crimes de corrupção e estelionato. Araújo, o outro funcionário do ministério, depois de preso, fez acordo de delação premiada com a Polícia Federal. Conta que, no ano passado, foi procurado por representantes do PCdoB que, com a foto em mãos, queriam detalhes sobre suas ligações com o juiz. “Moro estava na festa e tiramos a foto. Foi coincidência. Não houve nenhuma irregularidade nesse processo do sindicato do Paraná. Acho que ele (Cabral) está querendo criar essa situação que não existe”, afirma o também ex-coordenador da área de registros do Ministério do Trabalho. Fábio Aguayo conta que, desde que a foto foi publicada, não teve mais sossego. “A turma do PT ficou em cima da gente.” O ministro da Justiça garante que nunca falou com o estelionatário nem fez pedido algum a ninguém. “Nunca faria isso.”
Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622
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