Bolsonaro aposta alto na força da máquina para ganhar fôlego na eleição
Enquanto faz questionamentos infundados sobre as urnas eletrônicas, o presidente coloca em prática a estratégia de distribuir R$ 300 bilhões
A jovem Evelin Vitória Magalhães, de 19 anos, mora no pequeno município amapaense de Cutias, vizinho à capital Macapá. Sua casa não tem laje nem reboco, conta com um único cômodo dividido em quatro partes por cortinas e abriga mais cinco moradores: o marido e os dois filhos, além de um cunhado e um sobrinho. No espaço, há camas e fogão, mas não televisão. A renda do casal é de cerca de 1 000 reais por mês, dos quais 250 reais são destinados ao pagamento do aluguel. O marido consegue 600 reais pescando no Rio Araguari. Já Evelin recebe 400 reais do Auxílio Brasil e, a partir de agosto, será contemplada com mais 200 reais graças à promulgação da emenda constitucional que ampliou o principal programa de transferência de renda do governo federal. Idealizada para dar fôlego à reeleição de Jair Bolsonaro, que está em segundo lugar nas pesquisas, a emenda pode ajudar o presidente a melhorar seus índices de intenção de voto entre os mais pobres, que formam a maioria do eleitorado brasileiro. A dúvida da classe política é se a iniciativa resultará em votos favoráveis ao ex-capitão em quantidade suficiente para ele vencer em outubro. Ou seja: se o uso da máquina pública promoverá a virada sobre Lula.
O caso de Evelin dá a entender que as coisas não serão tão fáceis para Bolsonaro quanto ele e seus coordenadores de campanha esperam. Embora esteja feliz com o aumento do benefício, a jovem reclama de que alguns alimentos encareceram demais e que a nova ajuda do governo federal, apesar de bem-vinda, pode não ser que não baste para garantir comida suficiente à mesa de sua família. “Ainda não decidi em quem vou votar. O auxílio de 600 reais pode ajudar, mas as coisas aumentaram muito depois do Bolsonaro”, afirma. Hoje, a inflação e a carestia de alimentos, combustíveis e gás de cozinha são os grandes obstáculos para a reeleição de Bolsonaro. Único presidente a estar atrás nas pesquisas a menos de três meses da votação, entre todos os que tentaram renovar o mandato, Bolsonaro resolveu honrar uma tradição nacional e apelar à força da máquina pública para recuperar terreno. Num primeiro momento, baixou impostos de produtos, antecipou o pagamento do décimo terceiro salário a aposentados e pensionistas do INSS e autorizou o saque de até 1000 reais para trabalhadores com saldo em suas contas de FGTS. O objetivo era baratear preços e colocar dinheiro nas mãos das famílias. “O grande diferencial deste governo é que ele não faz tudo pensando em eleição. Bolsonaro vai ser reeleito por uma combinação de fatores, como estabilidade, respeito ao teto de gastos e credibilidade”, disse a VEJA em março o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira.
Na época, Nogueira estimava que o chefe empataria com Lula em meados de maio e ultrapassaria o petista durante o período das convenções partidárias, que começaram oficialmente na quarta-feira 20. Até agora, o prognóstico não se confirmou, e o ministro, que é um dos coordenadores da campanha à reeleição, endossou a estratégia de Bolsonaro de desrespeitar o teto de gastos, pôr em xeque a credibilidade da política fiscal e lançar um novo pacote, de 41 bilhões de reais, destinado a ampliar o Auxílio Brasil, bancar um benefício mensal de 1000 reais a caminhoneiros autônomos e dobrar o valor repassado a famílias carentes para ajudá-las a comprar botijão de gás. Tudo feito às pressas, já que em época de eleição, como disse certa vez a então presidente Dilma Rousseff, pode-se fazer o diabo. Por enquanto, as medidas eleitorais de Bolsonaro já superam a casa dos 300 bilhões de reais, sendo que boa parte delas estourará no colo do vencedor da eleição. Essa bomba fiscal de efeito retardado não importa ao presidente, que está mais preocupado em ganhar em 2022 do que com a administração do país em 2023. As novas benesses de seu pacote ainda não começaram a ser desembolsadas, o que ocorrerá a partir de agosto, mas o mero debate sobre o assunto parece ter favorecido o mandatário.
Pesquisa Genial/Quaest realizada entre 29 de junho e 2 julho mostrou que a desvantagem do presidente para Lula caiu de 16 para 14 pontos porcentuais. No geral, parece pouco e está dentro da margem de erro, mas, descendo aos detalhes, detectou-se uma redução significativa da dianteira do petista entre os nordestinos, as mulheres e os eleitores com renda de dois a cinco salários mínimos, que são o público-alvo desses recursos. A diferença nesses segmentos caiu, respectivamente, 16 pontos, 9 pontos e 7 pontos. Os dados foram colhidos duas semanas antes de o Congresso aprovar o pacote bilionário do presidente. Na época, 61% dos entrevistados já tinham conhecimento da possibilidade de aumento do valor do benefício do Auxílio Brasil e 46% sabiam da proposta de criação do subsídio para caminhoneiros. Não será surpresa se os novos levantamentos mostrarem uma diminuição ainda maior dessa diferença. “O Bolsonaro tinha tudo para estar na frente, mas houve a pandemia e a guerra da Ucrânia, que geraram problemas graves. Ele perdeu prestígio com a inflação. O eleitorado vai sentindo na pele a perda do poder de compra”, diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega. “Bolsonaro provavelmente não ganhará todos os votos do Auxílio Brasil, mas vai ganhar muitos votos com as medidas anunciadas”, acrescenta.
Com uma experiência de mais de treze anos à frente do governo federal, o PT conhece bem o peso da máquina pública e da caneta presidencial. Em 1998, Fernando Henrique Cardoso derrotou Lula depois de manter artificialmente a paridade entre dólar e real, abandonada logo no início do segundo mandato do tucano, que foi acusado, então, de estelionato eleitoral. Já o petista renovou o mandato em 2006 ao injetar bilhões de reais em programas sociais a fim de atenuar os efeitos negativos em sua popularidade do escândalo do mensalão. Hoje na oposição, os petistas estão apreensivos com os efeitos eleitorais das ações de Jair Bolsonaro. O partido votou a favor do pacote eleitoral, mas numa tentativa de conter danos está conclamando os eleitores a embolsarem os benefícios e negarem voto a Bolsonaro nas urnas, sob a alegação de que o presidente só resolveu agir diante do risco de derrota. “Lula sempre lutou contra a fome e defendeu mais oportunidade para o povo, mas tem gente que afundou o Brasil e agora acha que o povo é bobo”, diz uma das peças publicitárias do PT distribuída nas redes sociais.
Longe do conforto dos comitês de campanha, o pacote tem impacto diverso e será alvo de disputa renhida. Morador do município de Amapá, homônimo ao Estado, o peixeiro Eliolino Mariaves diz que a ampliação do Auxílio Brasil pode impulsionar a campanha do presidente: “O cidadão abestado vai se emocionar com o aumento do benefício e votar no Bolsonaro, mas a pessoa de bem sabe que isso é enganação e que vai falir o país”. Já o caminhoneiro Antônio Furtado declara voto em Bolsonaro independentemente de ser contemplado com a ajuda de 1 000 reais mensais. Se receber a grana, melhor ainda, até porque a conta da alimentação anda salgada. “Vou comprar 100 reais de comida e 900 reais de diesel”, diz Antônio. A máquina tem força e o governo vem explorando esse potencial. Desconsiderando a cartilha liberal que prometia defender, o presidente interveio na cúpula da Petrobras, que anunciou na terça-feira 19 redução do preço da gasolina, exatamente como esperavam os coordenadores da campanha à reeleição. Até recentemente, o litro da gasolina estava em 8 reais. Em muitos lugares, encontra-se agora abaixo de 6 reais.
O presidente e seus auxiliares também esperam colher frutos com a execução das chamadas emendas de relator, que só neste ano têm um orçamento de mais de 16 bilhões de reais. Também conhecidas como orçamento secreto, essas emendas foram usadas pelo governo para consolidar a parceria com o Centrão e permitir que parlamentares aliados irrigassem as suas bases com recursos federais. O comitê da reeleição confia que o dinheiro liberado nos últimos três anos fará com que prefeitos, deputados e vereadores trabalhem por Bolsonaro na campanha presidencial. Assim, a máquina local também estaria a serviço da renovação do mandato do ex-capitão. Dos 16,5 bilhões em emendas de relator previstos para 2022, quase 7 bilhões haviam sido efetivamente pagos até o início do mês. O Estado mais contemplado com verbas em 2022 é Minas Gerais, o segundo maior colégio eleitoral do país e o único da região Sudeste em que o presidente está bem atrás de Lula. Detalhe: em todas as últimas eleições, quem ganhou em Minas ficou com a faixa presidencial.
Desde que foram turbinadas pelo Congresso, as emendas de relator estão sob escrutínio de órgãos diversos, como a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União. Há suspeitas de que financiam esquemas de corrupção, banquem compras superfaturadas e sejam desviadas para bolsos privados sem que beneficiem a população. Mas um pedaço delas chega, sim, ao objetivo final e pode render dividendos aos responsáveis por sua liberação. Cutias, onde mora a jovem Evelin Magalhães, foi contemplada com 24 milhões de reais em emendas de relator nos últimos três anos, média de 3 900 reais para cada um de seus 6 200 habitantes, a quinta maior média do país. As ruas do município, antes de terra batida, agora são todas asfaltadas, e as calçadas foram cimentadas e ganharam sinalização. Escolas e postos de saúde passaram por reformas e receberam equipamentos novos. Uma placa na entrada da cidade credita o recebimento de recursos ao ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre, que era aliado, mas se distanciou de Bolsonaro. De olho na eleição, o presidente tenta reconstruir pontes com o senador, que pode ser um importante cabo eleitoral no estado.
O desafio da equipe de Bolsonaro é mostrar ao eleitor das localidades agraciadas com as emendas de relator que as melhorias têm como patrono o presidente da República, que executa o Orçamento federal. O comitê da reeleição acredita que, com mais publicidade oficial e o início da propaganda eleitoral na TV, esse trabalho de convencimento será feito com sucesso. Haverá dificuldades, claro. Tome-se o exemplo de Gameleira de Goiás (GO), a 170 quilômetros de Brasília, a segunda cidade que mais conseguiu emenda de relator per capita — com 3 900 habitantes, teve 20,8 milhões de reais empenhados nos últimos três anos, média de 5 300 reais por cabeça. No município, pacientes são atendidos prontamente nos dois postos de saúde e recebem os medicamentos prescritos, uma raridade em se tratando de saúde pública no Brasil. As ruas estão asfaltadas e sem buracos, e a merenda escolar inclui arroz, macarrão e carne bovina — outra raridade no cardápio da maior parte das famílias brasileiras. O prefeito de Gameleira, Wilson Tavares (União Brasil), não se mostra interessado em tomar partido na disputa presidencial: “Nós, prefeitos, não sabemos de onde vem o dinheiro. O deputado liga para você e diz: ‘Olha, estou colocando para você aí 1 milhão’. Ele só te avisa”.
Nem sempre as realidades regionais permitem a prefeitos, vereadores e deputados gestos de gratidão e retribuição ao presidente de turno. No próprio PP de Ciro Nogueira, há quadros estaduais que farão campanha por Lula. Mas, se tal manobra for conduzida com pragmatismo, cobrando lealdade e reciprocidade, as intenções de voto do presidente devem crescer. Bolsonaro tem instrumentos para isso, como viajar o país visitando esses lugares agraciados e, no limite, demitir de cargos nos estados pessoas indicadas por eventuais desertores. Empossado presidente após o impeachment de Dilma Rousseff, Michel Temer foi o único mandatário que não tentou a reeleição, por reconhecer que desgastes diversos — como casos de corrupção nos quais foi citado, mas não condenado — inviabilizavam suas chances eleitorais. Cerimonioso como de costume, Temer disse a VEJA que a máquina pública pode ter influência na eleição a depender “da utilização que o governo faça dela”. A declaração embute o lembrete de que, pelo menos no campo da teoria, os governantes aumentam suas chances quando sabem usar seus poderes.
Essa é a questão em relação a Bolsonaro. Sob vários aspectos, ele é um presidente diferente dos demais. Não porque tenha escrúpulos em se beneficiar desse derramamento de dinheiro (ele não tem), mas simplesmente porque, em muitos momentos, não sabe como fazê-lo, insistindo, por exemplo, numa estratégia (absolutamente ensandecida) de questionamento das urnas eletrônicas. Na segunda-feira 18, o presidente convidou representantes de vários países ao Palácio da Alvorada para ouvirem a sua ladainha terraplanista contra o sistema eleitoral brasileiro. Ele repetiu as acusações, sem provas, de que há risco de fraude nas urnas e de que a cúpula da Justiça Eleitoral conspira para que seja derrotado em outubro. Com tal iniciativa, desagradou até mesmo a alguns de seus aliados, para os quais Bolsonaro deveria concentrar toda a energia na agenda positiva da multiplicação das bondades, e não nessa teoria conspiratória equivocada que ele insiste em repetir, afastando eleitores. Desde a adoção do instituto da reeleição no país, os candidatos a presidente que disputaram um novo mandato saíram sempre vencedores. Em todas as ocasiões, a máquina foi explorada para aumentar as chances de sucesso. Desta vez, ela está novamente em operação, em diversas frentes e com uma verba inédita. A extensão do seu efeito, porém, ainda é uma incógnita.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799