Barulho por impeachment de Bolsonaro é ainda difícil de prosperar
Panelaços e carreatas embalam pedidos de impedimento, mas o presidente conta com base parlamentar, popularidade e lidera a corrida para 2022
Poucos termos se fizeram tão presentes no vocabulário político dos brasileiros nas últimas décadas quanto a palavra de origem inglesa impeachment (impedimento), que rondou todos os presidentes desde a redemocratização do país e levou à queda de ao menos dois deles: Dilma Rousseff em 2016 e Fernando Collor em 1992 — este renunciou em meio ao processo de cassação. Quem está no alvo agora é Jair Bolsonaro, acossado principalmente por acusações de que cometeu erros variados ao gerir a crise desencadeada pela pandemia da Covid-19, escancarados pela atuação quase inerte diante do caos sanitário que se instalou em Manaus. O barulho aumentou com alguns panelaços há cerca de quinze dias e chegou às ruas das maiores cidades com carreatas no último fim de semana.
A gritaria dos últimos dias, no entanto, encobriu a pragmática voz corrente que se ouve nos bastidores da política, das instituições e dos negócios: não há as condições necessárias para o impeachment, embora muitos apontem uma extensa lista de motivos nos 64 pedidos protocolados na Câmara desde 2019, que vão dos erros na pandemia à falta de compromisso com a democracia, passando pela defesa de coisas indefensáveis, como a tortura, e a suposta interferência política em órgãos de Estado, como a Polícia Federal. Mas a cassação de um presidente é mais do que um processo de caráter jurídico, é fundamentalmente político — e neste momento, há dois fatores que dão alguma tranquilidade a Bolsonaro: ele tem boa popularidade e conseguiu nos últimos tempos criar uma razoável base política.
Talvez muitos daqueles que foram às janelas e às ruas tenham cometido o erro de interpretar a queda de apoio ao presidente, que realmente aconteceu, com uma aprovação baixa o suficiente para pedir a sua cabeça. Levantamento exclusivo feito pelo Paraná Pesquisas entre os dias 22 e 26 de janeiro aponta que a maioria (56,4%) rejeita a cassação (veja o quadro acima). Embora a taxa de ótimo e bom de sua gestão tenha oscilado para baixo em janeiro, na comparação com dezembro, ela ainda é de 33,3%, maior do que a verificada em maio passado (31,8%) e capaz de reforçar a tese de que um terço do eleitorado continua aliado incondicional de Bolsonaro. Em abril de 2016, um mês antes de Dilma ser afastada, 63% achavam o governo da petista ruim ou péssimo, segundo o Datafolha, e 61% defendiam o impeachment, o que aconteceu quatro meses depois.
Mesmo se Dilma tivesse uma popularidade melhor e pudesse contestar os problemas — no caso, pedaladas fiscais — faltava à petista outro fator importante para barrar um impeachment: base política. Rompida com o MDB do vice Michel Temer e do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e ruim no trato com aliados em geral, ela viu seu processo ser aberto na Câmara por 367 votos a 137 e a cassação ser aprovada pelo Senado por 61 a 20, uma derrota que expôs o tamanho da falta de apoio a ela no Congresso. Bolsonaro, em que pese seus atritos com Rodrigo Maia (DEM-RJ), conseguiu vitórias importantes no Legislativo e tem aliados como favoritos a assumir o comando das duas Casas em fevereiro — Arthur Lira (PP-AL) na Câmara e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no Senado (veja reportagem na pág. 36), o que deve dificultar ainda mais qualquer chance de impeachment.
Outro ponto a favor de Bolsonaro é que — apesar dos panelaços e carreatas — falta mobilização de massa para pressionar as forças políticas a agir, como o enorme contingente verde-amarelo que se mobilizou contra Dilma ou as passeatas entusiasmadas dos jovens caras-pintadas pedindo a cabeça de Collor. “Não há apoio político nem popular”, diz o mesmo Collor sobre o cenário atual. Já Michel Temer, que teve 31 pedidos de impeachment contra ele, disse a VEJA que só não caiu porque “não havia povo nas ruas” (leia entrevista na pág. 9). Estudioso das condições sociopolíticas que acarretaram impeachments na América Latina, o professor argentino Aníbal Pérez-Liñán, da Universidade de Notre Dame (EUA), concorda que a ausência de mobilização popular é o maior entrave para que um processo ganhe tração no Legislativo. “Os congressistas teriam de sentir que o custo imediato de estar ao lado de Bolsonaro é maior do que os benefícios que terão ao desembarcar do governo. Esse é o senso de urgência e de perigo que é provocado por protestos maciços nas ruas”, afirma. Com ele concorda o historiador brasileiro Boris Fausto: “Embora eu seja favorável, a possibilidade é remota porque não há mobilização suficiente nas ruas e um Congresso que se disponha a isso”.
Evidentemente, o barulho deve permanecer por algum tempo. A esquerda prepara novos protestos — alguns virtuais, outros dentro de carros, em razão da pandemia — e ensaia usar o pouco capital político que lhe resta para vocalizar o impeachment como a principal bandeira contra Bolsonaro na tentativa de unificar a oposição, que vinha penando para encontrar uma narrativa para antagonizar com o governo. “Se o movimento ganhar muita força, pode mudar a direção das velas dessa parcela que está comprometida momentaneamente com Bolsonaro”, acredita Rogério Carvalho (SE), líder do PT no Senado. Na própria esquerda, no entanto, há quem duvide do sucesso da empreitada, outros que preferem fazer Bolsonaro sangrar até 2022 e alguns que são simplesmente contra afastar o presidente. “Eu sou da oposição, mas falar de impeachment agora é uma grande irresponsabilidade com a população. O castigo é para o presidente, mas quem vai pagar é o povo”, diz o deputado Felipe Carreras (PE), líder de uma ala dissidente do PSB.
A balbúrdia esquerdista impede até que se aproveite um fato novo nos protestos deste ano: grupos de direita como o Vem pra Rua e o MBL (Movimento Brasil Livre), que lideraram atos contra Dilma, também fizeram carreatas para pedir a saída de Bolsonaro. Para não se misturarem, no entanto, a esquerda fez atos no sábado, e os direitistas, no domingo. A pressão pela saída de Bolsonaro também ganhou o apoio de políticos de centro como João Doria (PSDB), Luciano Huck (sem partido) e João Amoêdo (Novo), todos cotados para enfrentar Bolsonaro em 2022. “Minha intenção é criar um clima político na sociedade e que vá além das questões jurídicas. Eu estou antevendo um cenário muito ruim para o Brasil, com um presidente que não tem condições de administrar as crises que virão”, afirma Amoêdo.
Se na oposição de direita ou de esquerda não há convergência, entre o empresariado o consenso é o de que o impeachment é carta fora do baralho. Há um descontentamento explícito com a forma como o governo enfrenta a pandemia e com a falta de coordenação na proposição das prometidas reformas, mas a avaliação é que um processo de cassação só ajudaria a tumultuar ainda mais o já instável ambiente de negócios. “O debate dessa pauta serve mais como um aviso ao presidente. É preciso que ele saiba absorver as críticas e mude a rota do seu governo sob pena de o que não é possibilidade agora virá a ser um dia”, afirma José Roriz Coelho, vice-presidente da Fiesp e presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast). O desembarque do empresariado foi fundamental para a queda de Dilma, mas, como se nota, hoje ainda não está no horizonte.
Outra retirada que afundou a petista foi a do Centrão, que a apoiava e hoje está fechado com Bolsonaro. “Na época de Dilma, havia uma corrida para ver quem chegaria primeiro, como ficariam as correlações de forças partidárias em um governo Temer. Hoje, esse elemento ainda não se faz presente”, afirma Rodrigo de Almeida, autor do livro À Sombra do Poder: Bastidores da Crise que Derrubou Dilma Rousseff. O desembarque é improvável porque o apoio a Bolsonaro é a parte principal da estratégia do grupo para 2022. Enquanto ele estiver bem na foto da corrida presidencial, é improvável que perca aliados. E isso não ocorrerá tão cedo: segundo o Paraná Pesquisas, o presidente lidera com folga todos os cenários de primeiro turno (veja quadro na pág. 32), sempre com porcentual acima de 30% do eleitorado. Embora tenha oscilado para baixo em relação a dezembro, apenas um adversário teve avanço significativo: Doria, que o venceu na questão das vacinas e que faz do contraponto a ele na condução da crise sanitária o carro-chefe de sua estratégia eleitoral para daqui a dois anos. Mesmo no segundo turno, quando a disputa tende a ganhar caráter plebiscitário sobre o governo, Bolsonaro derrota Lula, Ciro Gomes, Doria e Huck. A exceção é o ex-ministro Sergio Moro, com quem tem um empate técnico.
O jogo ainda está sendo jogado. Embora esteja longe de se materializar, analistas concordam que só a mera discussão do impeachment já surtiu efeito sobre Bolsonaro. O exemplo mais claro foi a mudança de postura nesta semana, quando passou de sabotador a quase um entusiasta da vacina, chegando a agradecer à China pela “sensibilidade” em liberar o insumo da CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan. A crise do coronavírus vai continuar por um tempo, a vacina permite ao país enxergar algum horizonte mais positivo e o presidente se manteve até aqui com um capital político bastante razoável. Apesar de tudo, a bola ainda está com ele.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723