Assessor de Carlos Bolsonaro tenta intimidar na Justiça reportagem de VEJA
Com resultados instigantes, apuração sobre trabalho dos atuais servidores do político foi tratada como “perseguição”, com abertura de notícia-crime
Vereador em sexto mandato, Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho 02 do presidente, tem assessores de seus gabinetes anteriores sob investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro por suspeita de “rachadinha” e de serem funcionários fantasmas. Por decisão da Justiça, em maio, o próprio vereador e 26 pessoas ligadas a ele tiveram seus sigilos fiscal e bancário quebrados. Insere-se, portanto, no âmbito do interesse público conhecer também a rotina dos atuais servidores do político. De posse da lista dos funcionários, uma equipe de reportagem de VEJA bateu em setembro na porta (trancada) da sala 905 do Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara de Vereadores carioca. Ninguém atendeu — no atual regime de trabalho da casa, cada gabinete decide quem comparece e quem faz home office. O passo seguinte foi buscar contato com os assessores fora de lá. Entre 8 e 15 de setembro, VEJA tentou falar com um deles, o advogado Rogério Cupti de Medeiros Junior, que já defendeu Carlos Bolsonaro em pelo menos duas ações e que, desde janeiro, é um dos dezenove assessores lotados em seu gabinete. Foram uma ida ao prédio onde mora e três telefonemas — o que bastou para que Medeiros qualificasse o livre exercício do trabalho jornalístico como “perseguição” e abrisse uma notícia-crime contra a repórter Sofia Cerqueira.
A queixa, assinada por Medeiros, foi protocolada em 28 de setembro e, em quinze dias, virou inquérito pelas mãos do delegado Pablo Sartori, titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) do Rio. Detalhe: nada havia de tecnologia ou informática na apuração dos funcionários. Em clara tentativa de intimidação e censura, o advogado — e servidor público — alegou ter tido a “intimidade da pessoa comum” invadida pela jornalista, que se identificou devidamente em todos os contatos citando o veículo para o qual trabalha e o tema da reportagem. Em 4 de novembro, Sartori remeteu a “investigação” à Justiça. O MP devolveu o inquérito à DRCI por uma questão processual, a falta de petição inicial, e está aguardando o reenvio. Sartori, por sinal, é conhecido por acatar sucessivas denúncias do clã Bolsonaro contra jornalistas, como os apresentadores do Jornal Nacional, William Bonner e Renata Vasconcellos, entre outros.
O conjunto do trabalho jornalístico (ainda em curso, aliás) vinha rendendo resultados, no mínimo, curiosos. Trata-se, sem dúvida, de uma equipe com alto grau de fidelidade ao clã presidencial. Entre os servidores do gabinete do vereador, com salários entre 7 100 e 23 400 reais líquidos, oito trabalharam anteriormente com Jair Bolsonaro, quando este era deputado federal, ou com o senador Flávio Bolsonaro, quando servia no Legislativo estadual. Essa mesma turma vem com o próprio Carlos Bolsonaro de mandatos anteriores. Três deles, inclusive, estão na lista dos servidores com sigilos quebrados pelo Ministério Público — Jorge Luiz Fernandes (assessor-chefe), Regina Célia Sobral Fernandes (mulher de Jorge e oficial de gabinete) e Edir Barbosa Góes (assessor).
Outra característica comum observada é a polivalência. Da folha de pagamentos atual, o advogado Medeiros, nomeado com vencimentos de 12 900 reais, afirmou a VEJA não exercer nenhuma atividade paralela. No entanto, em sua página no Facebook, fica explícito que ele está à frente da empresa Impacto — Atirador Desportivo, uma consultoria para a legalização do porte de arma. Questionado, o advogado rebateu dizendo que só presta uma ajuda a amigos. “Agora, se a senhora quiser, acho válido ter uma arma de fogo na sua casa, ainda mais sendo jornalista. Vocês sempre dizem que são atacados”, recomendou. Em postagens nas redes sociais, Medeiros diz cobrar 500 reais “simbólicos” pelo trabalho na Impacto. Em um endereço da empresa, porém, uma pessoa registrou, por escrito, o valor do serviço: 3 000 reais à vista ou 3 500 reais parcelados. Medeiros, aliás, não é o único advogado lotado no gabinete. VEJA localizou Almir Longo Pereira, assessor contratado por 8 200 reais mensais, em dia útil, trabalhando em um escritório próprio de advocacia em Cachoeiras de Macacu, a 120 quilômetros da Câmara. Visivelmente tenso, exibindo o crachá oficial, alegou que “faz consultoria jurídica para o vereador” e que está “de home office”.
Evidentemente, o sistema de home office permite atualmente o trabalho a distância dos funcionários de qualquer gabinete. Mas o acúmulo de funções com outras atividades é algo, no mínimo, questionável. Tome-se como exemplo o caso de Levy Alves dos Santos Barbosa. Durante todo o tempo em que serviu no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, entre 2017 e 2018 (8 000 reais, nenhum registro de presença na Câmara), o “servidor equilibrista” manteve licença de feirante na Prefeitura do Rio (matrícula 56209), com autorização para “vender verduras, legumes, frutas e ovos” em quatro feiras. A partir de janeiro de 2018, ele trocou Brasília pelo gabinete do vereador Carlos, mas prosseguiu com a mesma dupla jornada. Até agosto daquele ano, manteve a licença de feirante ativa, deixando de renová-la, curiosamente, pouco antes de o escândalo da rachadinha aparecer pela primeira vez envolvendo o nome da família. Com grande salto salarial em três anos, hoje ele recebe 18 690 reais líquidos. Barbosa, que só tem o segundo grau e é dono de uma quitinete em construção no terreno de parentes em Bento Ribeiro, Zona Norte do Rio, é visto com frequência, no horário comercial, em um bar da região. “Levy vem sempre aqui, sim”, diz o dono.
Salários altos para funcionários com histórico de baixa qualificação é outra constante no gabinete de Carlos Bolsonaro. O feirante Barbosa, por exemplo, é amigo de outro assessor do vereador, o ex-motoboy Alexander Florindo Baptista Júnior, que como ele só tem o ensino médio, concluído em supletivo aos 22 anos. Salário atual do motoboy: 15 900 reais líquidos. “Parabéns vagabundo”, postou o ex-feirante no aniversário do parça. “Tmjs (Tamo juntos) vagabundo”, respondeu ele. Baptista, que mora em uma área paupérrima da Baixada Fluminense, foi visto pela reportagem, em uma sexta-feira à tarde, levando um parente para cortar o cabelo. Seu padrasto, João (não quis dar o sobrenome), conta que o rapaz chegou a fazer bicos como motoboy para complementar o que ganha na Câmara de Vereadores — “um salário de uns 4 000 reais”, calcula. Quando ouviu da reportagem a quantia estampada no holerite, João arregalou os olhos, surpreso. Amigo dos Bolsonaro, Barbosa posta fotos com o presidente e esteve no casamento de outro filho, o deputado Eduardo Bolsonaro.
A proximidade entre todos, porém, raramente, se dá em ambiente de trabalho. Com as gravações e anotações dessas rotinas, VEJA voltou recentemente à sala 905 do Palácio Pedro Ernesto, que, desta vez, estava aberta. Segundo o assessor que nos recebeu, uma das justificativas para o gabinete costumar estar às moscas foi de que parte da força de trabalho atuava em uma espécie de Q.G. do clã Bolsonaro em Bento Ribeiro. Fomos até lá. Na casa, cercada de grades, câmeras e vidros escuros, quase não há movimento. Nas cinco vezes em que VEJA tocou o interfone do imóvel, só foi atendida em uma e a pessoa informou que seguia uma “escala”, sem mais detalhes. Impedir a compreensão desse singular regime de trabalho, com funcionários ausentes e muito bem remunerados, parecia ser a intenção do advogado Medeiros ao prestar uma queixa infame contra a jornalista Sofia Cerqueira. Não conseguiu.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765