As eleições municipais terão a maior campanha digital da história do país
Impactada pelas restrições da pandemia, a disputa trará várias inovações na caça ao voto
A corrida presidencial de 2018 ficou marcada por ter sido a primeira a utilizar em larga escala os meios digitais para influenciar o voto, seja por aplicativos de mensagens, como o WhatsApp, seja por meio das redes sociais. Com a evolução das tecnologias e a sua presença cada vez mais ostensiva no cotidiano das pessoas, era natural que a eleição seguinte fosse ainda mais influenciada por esse tipo de caça ao eleitor, mas a pandemia do novo coronavírus amplificou o potencial para que a disputa pelos cargos de prefeito e vereador, em novembro, seja a mais digital da história do país. Em razão das restrições impostas para conter o vírus, sairão de cena o corpo a corpo em locais públicos, as caminhadas com militantes pelas ruas das cidades, os tradicionais comícios, as fotos com crianças no colo, os abraços efusivos e a distribuição em massa de santinhos. No lugar, entrarão os panfletos digitais, as selfies, os vídeos, os disparos de mensagens endereçadas a um perfil específico de eleitor, os debates virtuais e até inovações como os “livemícios”. Oficialmente, a corrida começa na próxima segunda, 31, com o início das convenções partidárias (o término dessa fase ocorrerá em 16 de setembro). Na prática, a disputa já começou, com grande movimentação nos bastidores para se adequar a essa nova realidade.
Se o impacto digital no pleito que levou Jair Bolsonaro à Presidência chocou muita gente, o portfólio de novidades para este ano tende a surpreender muito mais. Uma delas será a estreia da rede chinesa de vídeos curtos TikTok em uma eleição no país. “O aplicativo vai ser o game changer neste pleito, sobretudo para ativar os jovens no Brasil”, disse a VEJA o publicitário americano Arick Wierson, que foi consultor de imagem na campanha bolsonarista e deve atuar em disputas municipais em 2020 (mas não revela com quais clientes está negociando). Outra inovação será o santinho digital, uma espécie de card com a foto e o número dos candidatos, que já está à venda em sites. Consagradas na pandemia, as lives tenderão a virar “livemícios” na política. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu nesta sexta-feira, dia 28, por unanimidade que estão vedados os eventos transmitidos com artistas, já que a lei proíbe shows como propaganda eleitoral, mas é difícil impedir que um artista mande um “alô” ao político preferido durante um vídeo ao vivo. Pré-candidatos já começaram a se valer da ferramenta — Guilherme Boulos (PSOL) tem um programa no YouTube chamado Boulos Invadiu Minha Casa, enquanto a candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela d’Ávila, passou as últimas semanas fazendo lives com associações de bairros. Deve vingar ainda o “Big Brother eleitoral”, no qual o candidato simula com vídeos e fotos o dia a dia com a família, com os amigos, com a comunidade. Eduardo Paes (DEM), no Rio, postou recentemente uma imagem fazendo churrasco no quintal de casa com a camisa do Vasco. “Se dará melhor quem conseguir fazer isso de maneira que não pareça falsa”, afirma o fundador do Ideia Big Data, Maurício Moura, que participou de cursos de marketing digital a candidatos do MDB e do movimento RenovaBR.
Apenas ter à mão um portfólio grande de ferramentas, no entanto, não é suficiente para ter sucesso. Em 2018, o presidenciável Henrique Meirelles fazia quase 250 posts por dia e perdeu no voto para João Amoêdo e Cabo Daciolo. Um dos fatores disponíveis hoje para aproveitar melhor a campanha digital é o fato de as redes terem aperfeiçoado mecanismos de direcionamento, o que para a política é quase revolucionário. Agora, o Facebook permite que o prefeito de São Paulo — e candidato à reeleição —, Bruno Covas (PSDB), que passou por tratamento contra o câncer, faça um vídeo destinado somente a pessoas que seguem associações de combate à doença, por exemplo. Há ainda a possibilidade de georreferenciamento, ou seja, publicações direcionadas a certos bairros e ruas, o que, para uma eleição municipal, é um pote de ouro. “Essas novidades criam o que chamamos de ‘micríssima’ segmentação. Não é mais o público jovem, mas o jovem da periferia que anda de skate e não segue nada de política”, explica o consultor de marketing Daniel Braga. Nos últimos meses, ele se dedicou com outros especialistas da área a treinar pré-candidatos do PSDB. A grade inclui assuntos como os horários mais adequados para postagens, como reagir a fake news e a melhor posição para uma selfie (Braga também será responsável pela estratégia digital de Joice Hasselmann, pré-candidata à prefeitura paulistana pelo PSL).
Em meio a uma certa euforia pelas possibilidades criadas, a ampliação do uso da internet traz algumas preocupações relevantes. O campo de batalha que se abre no meio digital será propício para irregularidades de todo tipo, como a ostensiva antecipação da campanha. Ela começa oficialmente em 27 de setembro, mas já está a pleno vapor nas redes sociais, aproveitando-se do fato de não ter as limitações impostas à propaganda no rádio e na TV — que começa em 9 de outubro e também será um instrumento importante na eleição da pandemia. Outra ameaça é o velho problema de 2018 e que ainda assombra a disputa deste ano: as fake news. Pressionados, Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp passaram a ser mais criteriosos com contas de políticos e mais rápidos em cortar o alcance ou tirar um conteúdo falso do ar. A nova ameaça agora vem de deepfakes, montagens bem produzidas de imagens ou sons para dar a impressão de que um candidato disse ou fez algo. Com a grande demanda, também começou a aparecer gente vendendo serviços pouco republicanos, como banco de dados para disparos em massa no WhatsApp. A digitalização é boa para a democracia, ao permitir a ampliação e a qualificação do debate, mas pode também ser um instrumento para distorcê-la e aprofundar os seus problemas, que já não são poucos.
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702