Anistia ao 8 de Janeiro e mais: a onda de retrocessos que vai desafiar as instituições
Será um teste de fogo resistir ao combo da insensatez

A missão do novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), é de uma delicadeza ímpar. Ele foi apoiado por um bloco formado por dezessete partidos, representantes de praticamente todo o espectro político do Congresso, de bolsonaristas a comunistas. Para reunir tantas figuras diferentes no barco de sua candidatura, o parlamentar costurou uma série de acordos. Com o PT, por exemplo, teria assumido o compromisso de avalizar o nome de um petista para ocupar a próxima vaga de ministro no Tribunal de Contas da União. Com o PL, dono da maior bancada, o acordo passaria pela votação de projetos de interesse da sigla. Um deles é o que prevê anistia aos condenados pelos ataques ao Congresso, ao Planalto e ao Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de janeiro de 2023. Na campanha, sempre que era questionado sobre esse assunto, Motta desconversava, justificando que o tema era polêmico, dividia opiniões, acirrava ânimos e gerava tensão entre os poderes. Anistia e impunidade, afinal, costumam caminhar juntas.

Na semana passada, porém, o presidente da Câmara dividiu opiniões, acirrou os ânimos e gerou tensão entre os poderes ao minimizar a natureza dos distúrbios do 8 de Janeiro. “Golpe tem que ter um líder, golpe tem que ter uma pessoa estimulando, tem que ter apoio de outras instituições interessadas, como as Forças Armadas. Não teve isso. Ali foram vândalos, baderneiros com inconformidade com o resultado da eleição, demonstrando sua revolta, achando que aquilo ali poderia resolver talvez o não prosseguimento do mandato do presidente Lula. E o Brasil foi muito feliz na resposta”, disse o deputado. A declaração foi interpretada como um sinal de que o projeto que prevê anistia geral aos condenados, apesar de inconveniente e absurdo, conta no mínimo com a simpatia do presidente da Câmara — com isso, pode sair do limbo e, quem sabe, até ser votado em plenário ainda este ano.

A opinião do deputado ganhou o surpreendente endosso do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. Em entrevista, ele defendeu penas diferenciadas entre “quem quebrou uma cadeira” e quem armou um golpe. “O que eu defendo é uma dosimetria. Eu acho que, na hora que você solta um inocente, uma pessoa que não teve um envolvimento muito grande, é uma forma de pacificar. Esse país precisa pacificar, ninguém aguenta mais radicalismo”, afirmou. Enquanto isso, nos bastidores, Jair Bolsonaro e o presidente do seu partido têm se engajado pessoalmente em buscar adesões pró-anistia. Enquanto Valdemar Costa Neto sai em busca de dirigentes do Centrão, entre eles do União Brasil, PSD e Republicanos, o ex-presidente define estratégias para convencer parlamentares e a opinião pública a chancelar um perdão generalizado. Nos últimos dias, deputados marcharam pelos corredores aos gritos de “Anistia já!” e até levaram para o Congresso a mulher de um caminhoneiro condenado a catorze anos pelos atos de 8 de janeiro — segundo ela, o marido foi punido injustamente. Diante das câmeras e cercada de seus filhos, entre eles um bebê de 10 meses, ela se emocionou e pediu “misericórdia”. Em setembro do ano passado, Bolsonaro já tinha gravado um vídeo ao lado da família e fez um apelo aos senadores a assinarem “a questão do impeachment” de ministros do Supremo. “Estão roubando o futuro dessas crianças”, afirmou.

Há no Congresso diferentes projetos sobre a anistia. O principal deles prevê um perdão indiscriminado a quem participou de manifestações em qualquer lugar do país entre 30 de outubro de 2022 até a data em que a lei entrar em vigor. Outras propostas preveem a anistia também a quem financiou ou apoiou protestos relacionados às últimas eleições presidenciais. Não são notícias alvissareiras, principalmente quando se constata que elas fazem parte de um combo.

Em outra frente, deputados e senadores ligados a Jair Bolsonaro articulam a aprovação de um projeto que altera a chamada Lei da Ficha Limpa, que impede que pessoas condenadas por crimes como corrupção e abuso de poder, entre outros, disputem eleições. Hoje, os fichas-sujas ficam inelegíveis por oito anos. A proposta em análise reduz a punição para apenas dois anos. Há muitos interessados nessa mudança, mas sem dúvida o principal deles é o próprio Bolsonaro. O ex-presidente foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder político durante a campanha de 2022. Estaria, portanto, apto a disputar uma nova eleição apenas em 2030. No início do mês, ele se reuniu com o deputado Bibo Nunes (PL-RS), autor do projeto que reduz o prazo de inelegibilidade, que, se aprovado, o reabilitaria a concorrer em 2026. O argumento é que o ex-presidente e outros políticos da direita sofrem perseguição por parte do Judiciário. “É casuístico mesmo, isso nós não vamos negar”, afirma o deputado Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara. “O que foi feito com o Bolsonaro é arbitrário e totalmente injusto, ele não merece essa punição. A gente poderia resolver isso até com uma anistia exclusiva para ele. Ele foi punido por fazer reunião com embaixadores. Qual é o abuso disso?”, ressalta.

A Lei da Ficha Limpa é uma conquista da sociedade que está permanentemente sob ataque. Em 2023, um projeto aprovado na Câmara fixou a inelegibilidade em no máximo oito anos — a contagem começa após o cumprimento de uma eventual pena criminal. Na mesma entrevista em que desclassificou a tentativa de golpe, o presidente da Câmara também indicou ser favorável a mudanças na Lei da Ficha Limpa ao dizer que “oito anos são quatro eleições, um tempo extenso demais na minha avaliação”. A oposição, claro, comemorou mais uma vez. “Com o (ex-presidente) Arthur Lira, esse projeto não ia andar. Mas eu senti firmeza no Hugo”, afirma o deputado Bibo Nunes, autor da proposta. Idealizador da Ficha Limpa, o advogado Márlon Reis já tem engatilhada uma ação para ser ingressada no STF caso as mudanças sejam aprovadas. “O que se está tentando é deixar como não ocorrido o que de fato aconteceu nos últimos anos, tanto em matéria eleitoral quanto em matéria criminal relativa aos casos de atentado ao estado democrático de direito”, critica.

Uma terceira frente, essa ainda mais silenciosa, toca o que hoje é um dos principais motivos de dor de cabeça no Congresso. Em meio à investida do ministro Flávio Dino, do STF, contra a balbúrdia das emendas parlamentares, a nova cúpula do Congresso, muito reservadamente, passou a estudar uma proposta de acordo que colocaria um ponto-final no embate entre o Legislativo e o Judiciário sobre o assunto. A ideia é definir um marco temporal a partir do qual sejam adotados os critérios de transparência e de fiscalização das emendas exigidos pelo Supremo que valeria a partir de agora. A medida, na prática, enterraria inúmeras investigações da Polícia Federal sobre desvios de recursos do Orçamento federal detectados nos últimos quatro anos. Nos bastidores, percebe-se uma preocupação generalizada das lideranças partidárias com o avanço de alguns inquéritos — preocupação que atinge praticamente todos os partidos, ressalte-se. A pressão pelo bonde da impunidade só cresce — autoridades dos três poderes têm um encontro marcado no fim deste mês e o assunto deve entrar em pauta. Será um teste de fogo para as instituições resistirem ao combo da insensatez. O Brasil só tem a perder com qualquer retrocesso nesse campo.
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2025, edição nº 2931