Almeida propõe debate sobre legalização da maconha, mas esbarra em tabu
O ministro dos Direitos Humanos não sofreu reprimendas em público. Avaliação nos bastidores do governo Lula, porém, é de que não é hora de mexer no vespeiro
Sai governo, entra governo, a descriminalização do consumo de maconha no Brasil continua sendo um tabu. O exemplo mais recente de que políticos, da direita à esquerda, tentam abafar o assunto é a repercussão de uma declaração do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, defendendo a ideia de que o Supremo Tribunal Federal julgue logo um processo que está parado desde 2015 e libere a Cannabis. “Sou a favor (da descriminalização). A guerra às drogas causa um prejuízo irreparável”, disse Almeida à BBC, acrescentando que isso contribuiria para solucionar o problema dos presídios lotados. Trata-se de um debate racional e necessário, mas a reação no Congresso foi péssima, inclusive entre membros de partidos que integram o governo. Da tribuna, o deputado Coronel Assis (União Brasil-MT) disse que essa é “a política do fim do mundo”, e fez coro com o bolsonarista Osmar Terra (MDB-RS) de que tal iniciativa aumentaria a criminalidade. Na terça 14, Cabo Gilberto Silva (PL-PB) formalizou um requerimento de informações ao ministro do governo Lula, acusando-o de demonstrar “desprezo para com os milhares de familiares que sofrem com filhos viciados”.
Depois de apanhar feio pelo posicionamento corajoso e oportuno, Almeida resolveu se calar. O ministro dos Direitos Humanos não sofreu reprimendas em público — afinal, como observam seus interlocutores, suas posições progressistas são conhecidas desde antes de ele assumir a pasta —, mas não custa lembrar que uma polêmica parecida provocou uma baixa no governo da petista Dilma Rousseff. Em 2011, o então secretário nacional de políticas sobre drogas, Pedro Abramovay, deixou o cargo depois de defender o fim das prisões para pequenos traficantes.
O governo de Lula tentou apagar o incêndio provocado por Almeida, dizendo que a declaração era apenas uma opinião pessoal, sem indicação alguma de uma futura política pública. O Ministério da Justiça de Flávio Dino, ao qual caberia articular com o STF o julgamento breve do processo da Cannabis, afirmou a VEJA que qualquer mudança legal sobre as drogas deve ser feita pelo Congresso. Não deixa de ser uma forma de enterrar o assunto disfarçadamente, considerando-se o atual perfil conservador do Parlamento. Na mesma nota, Dino acrescentou ainda que o Executivo só deliberará sobre o tema após a decisão final do Supremo. Nos bastidores, a avaliação é de que não é hora de mexer nesse vespeiro, sobretudo em um momento de intensa polarização.
O julgamento que pode levar o STF a descriminalizar o consumo de drogas começou em 2015, foi suspenso por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki (morto em 2017) e, desde então, não voltou à pauta. Trata-se de um recurso de um homem flagrado com 3 gramas de maconha em uma prisão paulista. O entendimento do plenário nesse caso servirá para todos os processos semelhantes. Os ministros Gilmar Mendes (relator), Edson Fachin e Luís Roberto Barroso já votaram pela inconstitucionalidade do artigo da Lei de Drogas que prevê penas para quem portar substâncias ilícitas para consumo próprio. Para Mendes, a decisão deve abarcar todos os tipos de droga. Fachin e Barroso restringiram-se à maconha. Ainda faltam os votos de oito ministros, mas a sinalização é que a atual presidente da Corte, Rosa Weber, não levará o caso a julgamento em sua gestão, que terminará no fim de setembro com sua aposentadoria. Agora, a esperança dos que apostam no STF para avançar nessa agenda se deposita em Barroso, que será o próximo presidente do tribunal e já demonstrou simpatia pela causa.
Desde a Lei de Drogas de 2006, os usuários, em tese, não são mais punidos com prisão. O texto prevê sanções leves, como prestação de serviços à comunidade. O problema é que a lei deixou de estabelecer critérios objetivos para diferenciar o consumidor do traficante. Com isso, mesmo pessoas flagradas portando poucos gramas de maconha passaram a ser enquadradas por tráfico, levando ao aumento da população carcerária. Em 2005, havia cerca de 32 000 presos por drogas no país (13% do total). Hoje, são cerca de 180 000 (variando de 27% a 30% do total), segundo Marcelo Campos, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e estudioso do assunto. “O efeito principal da Lei de Drogas foi o superencarceramento”, afirma.
Nesse contexto, é importante que o STF não apenas descriminalize o porte, mas fixe uma quantidade máxima para caracterizar o consumo. Em seu voto, Barroso propôs a adoção do critério usado em Portugal: 25 gramas de maconha ou seis plantas, no caso de cultivo em casa. “É um parâmetro razoável”, diz o defensor público Rafael Muneratti, que atuou no processo. Enquanto Portugal, Uruguai, Estados Unidos e Canadá mostram avanços na política de legalização, no Brasil, infelizmente, qualquer debate sobre o tema acaba virando uma fumaça politicamente difícil de tragar.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833