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Ajuste de contas

O sistema previdenciário brasileiro, à beira do colapso, é um cipoal de discrepâncias. É hora de as classes que mais se beneficiam abrirem mão de vantagens

Por Hugo Vidotto e Thiago Bronzatto
Atualizado em 4 jun 2024, 16h06 - Publicado em 24 Maio 2019, 07h00

A seu modo, assertivo, avesso a medir palavras, o ministro da Eco­nomia, Paulo Guedes, resumiu o momento brasileiro da seguinte maneira em entrevista a VEJA: “Se não fizermos a reforma, o Brasil pega fogo. A velha Previdência quebrou”. Há um tom de diatribe na exclamação, mas há também bom-­senso e razão — o desequilíbrio das contas públicas em decorrência das aposentadorias é uma bomba-relógio com o pavio, curtíssimo, já aceso. “Sem a reforma, o Brasil quebra em um ano”, acrescenta Guedes. Como anota a Carta ao Leitor desta edição, existem momentos na história econômica de um país que são divisores de águas. Há 25 anos, embora não tenha resolvido todos os problemas nacionais, o Plano Real conseguiu um feito com impactos positivos até hoje: a vitória contra a inflação. De novo, estamos diante de um desses marcos definidores do nosso futuro. A reforma do sistema de aposentadoria é o primeiro e obrigatório passo para voltarmos a crescer. Sem ele, continuaremos no atraso. Se fizermos o ajuste, investimentos represados devem ser liberados e podem impulsionar novamente a economia.

Um modo de medir a urgência das mudanças é enxergar do avesso, esmiuçando o rombo que o atual sistema provocou, e que sucessivos presidentes tentaram remendar, sem sucesso. VEJA teve acesso aos cálculos do ministério de Guedes, capitaneados pelo secretário da Previdência, Rogério Marinho, o “senhor reforma” (leia), para montar o projeto levado ao Congresso. A matemática é cristalina (e cruel). A Previdência brasileira custa tão caro aos cofres públicos que o país foi obrigado a tomar um empréstimo de 266 bilhões de reais, no ano passado, só para pagar as pensões e aposentadorias, que somaram 749 bilhões de reais. O fosso cavado nas despesas públicas é maior do que a soma desembolsada com educação, saúde e segurança, que totalizou pouco mais de 220 bilhões de reais em 2018. Como a população brasileira tem cada vez mais idosos, o buraco só faz crescer, e então não sobrará dinheiro público para mais nada: salários, investimentos em hospitais, escolas e estradas. Já em 2021, a Previdência nacional vai absorver todo o orçamento dos gastos discricionários, ou seja, aqueles que o governo tem liberdade para manejar. O veredicto é claro, e pode ser reduzido a uma frase de duplo sentido: chegou a hora do ajuste de contas (com quem se beneficia dessa distorção, o que não poderá acontecer mais, e a volta do equilíbrio no orçamento).

Para que a reforma tenha efeito duradouro, e não precise ser refeita em pouco tempo — vale lembrar que Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff realizaram as próprias reformas, todas remendos insuficientes —, ela precisa provocar uma diminuição no seu custo à altura do problema (veja o quadro abaixo). Guedes estabeleceu uma meta ambiciosa, mas proporcional ao desafio: uma economia de 1,2 trilhão de reais em dez anos. É esse o número mágico.

Na ideia de finalmente romper com as incongruências atávicas, o governo decidiu atacar a gritante distorção da Previdência brasileira, ímã de privilégios inaceitáveis, até ofensivos: enquanto um empregado da iniciativa privada tem um teto de 5 839 reais mensais na aposentadoria, a média do valor recebido por um funcionário da Câmara dos Deputados é de 29 195 reais. Há casos de servidores públicos que embolsam, todos os meses, mais de 59 400 reais. Ressalve-se que os servidores públicos já contam com vantagens como a estabilidade de emprego (não podem ser demitidos a não ser por justa causa). Mas há quem, assustadoramente, defenda uma suposta justiça para garantir o alto padrão de vida de quem, afinal de contas, é empregado do povo. “Discordo desse discurso de privilégio”, diz o deputado Major Vitor Hugo, do PSL de Goiás. “As pessoas ingressam no serviço público com base no que a lei prevê, as regras estão postas”, completa, sem explicar por que regras postas — criadas pelos congressistas para definir os próprios proventos — não podem ser consideradas vantagens injustas. Detalhe: Vitor Hugo ainda é o líder do governo. Deveria defender o projeto.

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(Arte/VEJA)

A proposta da equipe econômica, esta que culminará em controle do caixa e freio às vantagens obscenas, tem duas linhas mestras. A primeira é definir uma idade mínima para a aposentadoria. No regime geral, a idade mínima para a aposentadoria dos trabalhadores do setor privado será de 62 anos, para mulheres, e de 65 anos, para homens, com recolhimento de contribuição por, no mínimo, vinte anos — em vez de quinze, como é atualmente. “É uma adequação”, diz Fabio Giambiagi, economista do BNDES e especialista em Previdência. “Para quem já se aposentaria por idade, nada muda. Trata-se de dilatar o período de permanência no mercado de trabalho para aqueles que se aposentam por tempo de contribuição e que, no Brasil, deixam de trabalhar com idades muito inferiores às observadas no resto do mundo.” Propõe-se, enfim, estabelecer alguma justiça social, um equilíbrio entre a aposentadoria das pessoas de maior renda e a daquelas da fatia mais pobre, para quem há carência em educação e em qualidade dos salários e, com isso, maior dificuldade de contribuir de maneira uniforme ao longo dos anos. A média de idade ao se aposentar por tempo de contribuição, no Brasil, é de 54 anos. Para a população mais carente, dada a instabilidade profissional, a aposentadoria só chega mesmo com a idade, e não por tempo de serviço. Essas pessoas passam a receber o benefício ao redor dos 65 anos, no caso dos homens, e dos 61 anos, no caso das mulheres. A reforma, ao cravar idades mínimas, cortará a vantagem de quem consegue se aposentar mais cedo.

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A segunda vertente forte do projeto estabelece uma regra simples: quem ganha mais contribui com mais. Pelo texto da reforma, para quem recebe até um salário mínimo, a alíquota deve cair de 8% para 7,5%. A partir daí, o desconto progride conforme as faixas de salário avançam, atingindo 11,68%. “O aumento da progressividade das alíquotas será muito positivo”, diz Carlos Góes, pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular.

Para aprovar a proposta, a equipe econômica montou uma autêntica estratégia de guerra. Uma das principais armas utilizadas é um programa que acompanha em tempo real as intenções de voto de cada um dos deputados, a partir do que eles postam nas redes sociais. Se algum político, por exemplo, criticar o novo regime previdenciário em seu Twitter, ele é automaticamente contabilizado como um ponto desfavorável. Ao todo, são necessários 308 votos dos 513 disponíveis para aprovar o projeto. Até mesmo influenciadores digitais são monitorados pelo time de Paulo Guedes e Rogério Marinho. O próprio ministro chegou a se reunir com celebridades, como o ex-jogador ­Kaká, a apresentadora Ana Hick­mann e a atriz Regina Duarte, para pedir ajuda na defesa da Nova Previdência. Um grupo de vinte funcionários do Ministério da Economia elabora apresentações para eventos, produz estudos e recebe entidades de classe. O time criou um grupo no ­WhatsApp chamado, não por acaso, de “Nova Previdência”. Nele são discutidas estratégias de comunicação e respostas para reportagens e artigos contrários ao projeto de reforma.

Foi dos integrantes desse grupo que nasceu a ideia de usar a notoriedade que o secretário especial adjunto de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, ganhou na apresentação da PEC feita ao vivo na televisão, em virtude de sua voz fina e anasalada, para se lançar nas redes sociais como o “Mickey da Previdência”. Gravou vídeos caseiros em que chegou a comparar o déficit público com o slime, aquela massa gelatinosa que virou febre infantil e terror dos pais. Bianco tentou tornar o tema mais palatável ao público que não é familiarizado com o economês. Funcionará? A resposta está nas mãos do Congresso. Depois de uma semana confusa, em que alguns deputados levantaram a ideia de apresentar uma proposta de reforma diferente da que já está em discussão na Câmara, o presidente da comissão especial encarregada de discutir o projeto, deputado Marcelo Ramos (PR-­AM), garantiu entregar o relatório final sobre a PEC na primeira semana de junho. O país tem pressa e, ao olhar para o mundo, percebe estar atrasado.

O Brasil não é o único canto do mundo a envelhecer, forçado a reavaliar sua Previdência. O alerta soou nos EUA nos anos 1990. Traçou-se um plano amplo, com mudanças ao longo dos anos: a próxima ocorrerá em 2023, quando a idade mínima subirá um ano, para 67. O Japão foi mais longe e criou uma espécie de gatilho de reajuste: a cada cinco anos o Congresso é obrigado a realinhar o sistema de acordo com a situação das contas públicas e das mudanças demográficas. Por aqui, já adiamos demais o momento do ajuste. Assim como o Plano Real acabou com a inflação descontrolada, está na hora de removermos mais um renitente obstáculo ao crescimento do país.

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Rodrigo Janot
(Sergio Lima/Folhapress)

AS MUDANÇAS PARA UM SERVIDOR DO ALTO ESCALÃO… 

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Em abril, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot se aposentou, aos 62 anos. Felizardo, é um dos que curtem o ócio sem se preocupar com dinheiro. Ao contrário da maioria dos brasileiros, ele terá uma remuneração polpuda, equivalente ao seu último salário, de 37 328,65 reais. O ex-servidor do Ministério Público ingressou na carreira por meio de concurso em 1984. Apesar de sua condição estar bem acima da média dos aposentados brasileiros, Janot diz não se considerar um privilegiado: “Estou claramente cumprindo o que está descrito nas normas estabelecidas no regime de Previdência brasileiro”.


Oton Pereira
(Cristiano Mariz/VEJA)
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…PARA UM SERVIDOR DO EXECUTIVO… 

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O administrador do Ministério da Saúde Oton Pereira Neves, de 61 anos, deverá se aposentar até o fim de maio. Secretário-geral do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal (Sindsep), ele recebe salário de 11 500 reais e uma remuneração extra de 1500 reais por ter retardado a sua aposentadoria. Para Oton, há, sim, privilegiados no funcionalismo público. Mas servidores como ele, com “salário menor”, são muito prejudicados. “Em troca da estabilidade e da aposentadoria integral, nós, servidores, abrimos mão do fundo de garantia, então não há privilégio”, diz.


Rosa Rodrigues de Brito Caraiba
(Heitor Feitosa/VEJA)

…E PARA UMA CONTRIBUINTE DO INSS

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Faz sete anos que Rosa Rodrigues de Brito, de 55 anos, é atendente de telemarketing. Ela começou a trabalhar aos 17 anos, como balconista de loja. Depois, virou secretária, mas sem registro. A carteira assinada viria anos mais tarde. A estabilidade acabou quando o patrão morreu e todos os funcionários foram demitidos. Tentou empreender, mas fracassou. Passou dez anos desempregada. Tem medo de perder o emprego: “Com a minha idade, conseguir outro é difícil”. Pelas regras atuais ou depois da reforma, ela não se aposentará antes de 62 anos.


Com reportagem de Hugo Marques, Nonato Viegas e Leandro Nomura

Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636

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