Aborto e direito indígena a terras devem esquentar agenda de Rosa no STF
A presidente do Supremo divulga um calendário que sugere maior discrição do tribunal, mas os temas prometem recolocar a Corte no centro de polêmicas
Conhecida pelo perfil discreto e pouco afeita a declarações públicas, ao mesmo tempo que sustenta posições firmes em defesa da democracia e da legitimidade do Judiciário para arbitrar os grandes conflitos da sociedade, a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, anunciou uma lista de julgamentos para o primeiro semestre que frustrou quem esperava o avanço de uma agenda progressista. A primeira pauta divulgada pela magistrada, que chefia o Supremo desde setembro, não embute nenhum caso capaz de provocar grande comoção. O gesto foi interpretado como uma forma de propiciar alguma distensão no cenário político ao tirar do foco o STF, um dos alvos mais visados na intentona golpista que varreu Brasília em 8 de janeiro. Mas poderá não ser como parece. Com previsão de ficar no cargo até setembro — ela completará 75 anos em 2 de outubro e terá de se aposentar —, a ministra deve pôr em discussão até lá dois temas com potencial para recolocar a Corte no centro de uma polêmica nacional.
Um desses assuntos é uma bola cantada desde que Weber assumiu a presidência. Ela poderia ter repassado o caso a outro ministro, mas manteve sob sua guarda um processo que discute a flexibilização da legislação sobre aborto, um tópico rechaçado pelo público conservador, que fez disso um dos temas da eleição. Weber é relatora de uma ação que pede a descriminalização da interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação. É dado como certo que a ministra — que fez audiências públicas para debater o assunto com especialistas e entidades da sociedade civil — não deixará a Corte sem apresentar o voto que vem preparando. Ainda que o julgamento não termine (algum colega pode pedir vista, por exemplo), Weber, que é a terceira mulher a presidir o STF, quer ter a oportunidade de deixar sua marca na história da discussão desse tema. Em 2016, ao julgar um caso específico, ela votou por descriminalizar a prática até o terceiro mês de gravidez.
Outra potencial polêmica é a demarcação de terras indígenas, que teve a sua temperatura elevada com a crise humanitária vivida pelos ianomâmis em razão da invasão de garimpeiros. Weber se comprometeu com entidades dos povos originários a concluir neste ano o julgamento do chamado marco temporal, o que deve impactar uma série de processos de demarcação. Pela tese, defendida por proprietários rurais e rechaçada pelos indígenas, estes últimos somente teriam direito às terras que já estavam em sua posse na promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. A análise começou em 2021 e foi suspensa por um pedido de vista de Alexandre de Moraes. Já votaram os ministros Edson Fachin (contra o marco) e Nunes Marques (a favor). Para ter uma ideia do potencial do caso, em maio de 2022, o presidente Jair Bolsonaro disse que, se o marco temporal fosse anulado, ele não iria acatar. “Tem uma ação levada avante querendo um novo marco temporal. Se conseguir vitória nisso, me restam duas coisas: entregar as chaves ao Supremo ou falar que não vou cumprir.”
O esvaziamento político da pauta de Weber não quer dizer, no entanto, que os casos nela colocados não sejam relevantes. Há discussões importantes nas áreas tributária e trabalhista, sobre a correção monetária do FGTS e em relação a procedimentos de investigação criminal, como o acesso de policiais a celulares encontrados em locais de crime sem prévia autorização judicial. Nenhuma delas, no entanto, tem potencial para colocar o STF em choque com a parcela da sociedade que, embalada pela pregação bolsonarista, elegeu o tribunal como inimigo. O mais próximo disso é uma ação que discute a concessão de licença-maternidade para a mãe homoafetiva não gestante cuja companheira tenha feito inseminação artificial.
A elaboração da pauta do plenário, por onde passam alguns dos assuntos mais relevantes do país, é um dos instrumentos de poder do presidente do STF, que costuma levar em conta aspectos como a conveniência política e o ambiente social. Ao anunciar um calendário ameno neste início de ano, Weber quis evitar que ele fosse interpretado como uma resposta direta ao ataque golpista. A avaliação de que o momento deveria ser de pacificação é compartilhada por outros ministros. Apesar disso, Weber foi enfática ao assegurar que os responsáveis pelo quebra-quebra serão punidos. “Assevero, em nome do Supremo, que, uma vez erguida da Justiça a clava forte sobre a violência cometida (…), os que a conceberam, os que a praticaram, os que a insuflaram e os que a financiaram serão responsabilizados com o rigor da lei”, disse ao abrir o ano judiciário. Sejam quais forem os julgamentos, o importante é que o STF possa realizá-los com independência e sem ameaças. É o que manda a Constituição.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827