A vitória do humor
Chega de polarização. Há ao menos uma unanimidade: as impagáveis imitações dos candidatos feitas por Marcelo Adnet
Foi numa criação instintiva, quase automática, que os candidatos à Presidência Jair Bolsonaro e Ciro Gomes viraram alvo da verve escrachada e impiedosa do carioca Marcelo Adnet. Aos olhos do comediante-imitador, eram ambos caricaturas óbvias, mas tão óbvias que as imitações saíram sem ensaio — fez um Bolsonaro de discurso decorado e raivoso que dispara um “cala a boca, quilombola” no meio da fala, e um Ciro que interrompe a “fase agregadora” para chamar a atenção de um “protoneoliberalzinho de m…”.
Na vez de Geraldo Alckmin, a coisa se complicou. Adnet teve de mergulhar em debates, declarações e entrevistas, um trabalho de dias, até matar a charada: o segredo estava na tensão da mandíbula. A mordida do tucano pesava sobre os dentes de trás, em um casamento harmonioso com o gestual contido, regido por “rédea currrrta”, concluiu Adnet. E ele enfatizou ainda um detalhe: a recorrência do “precisamos” — ou psssszâmo, no idioma de Alckmin.
Um após o outro, Adnet produziu dez vídeos de presidenciáveis — o mais recente foi o do quarteto do pelotão lanterninha nas pesquisas, Amoêdo, Meirelles, Alvaro Dias e Boulos — e dois de candidatos ao governo do Rio de Janeiro, Eduardo Paes e Romário — cuja imitação o comediante já fazia nos tempos do futebol e precisou adaptar a um momento em que “ele não pode mais sair do campo afirmando que é Deus”. Publicados no YouTube no canal do jornal O Globo, os vídeos já registram mais de 13 milhões de visualizações, popularizando um gênero que vem se expandindo conforme a cena política chafurda na crise e ganha contornos surrealistas. A infinidade de imitadores na internet ajuda a dar a esse tipo de humor, colado ao cotidiano, a instantaneidade que ele exige.
Aos 37 anos, egresso da MTV e hoje no elenco do humorístico global Tá no Ar, Adnet entende que o terreno da sátira política é pantanoso, sobretudo nestes tempos de alta polarização, mas não quis ficar de fora. “Imito desde criança, e meus amigos gostam. Só institucionalizei a brincadeira. Saí do armário”, diz. Entre os pares, ele é tido como um dos grandes imitadores da atualidade, da mesma cepa de Márvio Lúcio, mais conhecido como Carioca, que ganhou fama com uma encarnação hilária da ex-presidente Dilma Rousseff. O colega Fabio Porchat observa em Adnet uma característica que faz toda a diferença: “Mesmo neste momento difícil, ele não se intimida”, afirma. O tom crítico permeia os vídeos com graça e sarcasmo. Quando Alckmin garante que fará no Brasil o mesmo que em São Paulo, soa ao fundo uma sirene para acentuar o susto da afirmação. O petista Fernando Haddad insiste no bordão “Lula não é uma pessoa, é uma ideia”. Marina Silva afirma que “tudo o que estiver em aberto” será debatido “democraticamente”.
O espaço de criação de Adnet é a casa onde mora, na Zona Oeste do Rio, longe da “barulheira das britadeiras e dos bicheiros” do seu antigo apartamento na Zona Sul. Na companhia de três cachorros e dois gatos (um deles Zidane, mestre em cabeçadas), ele passou dias assistindo ao discurso dos candidatos debruçado sobre uma cartolina caótica, da qual se originam os roteiros: anota palavras-chave, gestuais e até variações no timbre de voz. Essa percepção das cordas vocais o fez chegar ao misto de estridência e fala rígida de Marina Silva, a única mulher da turma. “A postura dela compensa aquele monte de machos alfa gritando”, diz. Para Adnet, qualquer imitação brota da audição apurada, habilidade que afiou ao estudar idiomas — fala sete, entre eles papiamento, que absorveu em viagens às Antilhas Holandesas, e russo.
As gravações são feitas em casa mesmo, com uma equipe de três pessoas. Às vezes, Adnet as recepciona já convertido em um de seus personagens. O gestual é tão meticuloso que se pode identificar quem é quem quase sem o uso de adereços e com a imagem congelada (como nas fotos que ilustram as páginas anteriores). O humorista fala horas como seus imitados, antes, durante e até depois das filmagens. Cabo Daciolo, por exemplo, que fez de uma só tacada, demorou a desencarnar. Haddad e seu bico persistiram na pele do humorista. Eles lhe deixam “sequelas”. “Vejo o debate e penso: ‘Sou eu! Eles estão me imitando!’ ”
A tradição de imitar políticos vem de longe — resvala, inclusive, em Charlie Chaplin com bigodinho de Hitler no clássico O Grande Ditador, de 1940 (Chaplin posteriormente se arrependeria do tom leve de sua sátira). Mas o pai de todas as imitações do gênero, no ar há 43 anos, é o humorístico Saturday Night Live, da rede americana NBC. Quando alguém comete uma gafe ou se mete em situação estapafúrdia, o público fica à espera da reprodução no SNL da semana. A maior parte ri de si mesma. Não é o caso do presidente Donald Trump, que desde a campanha é impagavelmente imitado pelo ator Alec Baldwin. Trump já tuitou sobre o SNL: “Não é engraçado, o elenco é horrível, sempre atirando em alguém. Péssima televisão”. Quanto mais ele implica, mais o público se diverte.
Aqui também a maioria dos alvos de Adnet ri dele, ainda que amarelo. Marina e Ciro postaram suas respectivas paródias. Elas são elogiadas em mais de 90% dos comentários, à exceção da de Bolsonaro. Seu exército de plantão espalhou boatos, castigou o humorista com ofensas e ameaças e promoveu uma campanha contra o vídeo. Agora que Adnet conhece os candidatos de cor e salteado, cabe a pergunta: em quem vai votar? Isso ele não revela nem como piada.
Quem é quem por Adnet, na montagem que abre esta reportagem
No alto, da esq. para a dir.: Bolsonaro, Fernando Haddad e Ciro Gomes; embaixo, da esq. para a dir.: Alckmin, Marina Silva e Cabo Daciolo
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603