A retórica de Bolsonaro: o que revelam os discursos na pandemia
As falas, dissecadas por VEJA, mostram o modo de ver o mundo de um presidente que espalha inverdades, aposta na confusão e não aceita o contraditório
Vem do grego Aristóteles (384 a.C-322 a.C.) a primeira manifestação conhecida da relevância da escolha correta das palavras, no clássico Retórica, no qual estabeleceu os princípios básicos de um recurso humano, demasiadamente humano. Os séculos que se seguiram comprovariam o papel da fala bem encaixada em toda e qualquer situação, mas principalmente quando ela sai da boca de líderes, e mais ainda se os ouvidos que a escutam passam por algum cataclismo — e poucos se comparam à pandemia do novo coronavírus que, com 8,4 milhões de casos confirmados (beirando 1 milhão no Brasil), alcança o infeliz título de a maior crise humanitária do planeta desde a II Guerra Mundial. Impulsionada pela catástrofe, a palavra oral retumba sem parar na internet, caixa de som de extraordinária potência, favorecendo abusos, por um lado, mas permitindo, também, análises aprofundadas do discurso das autoridades. Com o objetivo de melhor compreender o modo de pensar e agir do presidente Jair Bolsonaro, a quem calhou de capitanear o Brasil em meio à tormenta, VEJA esmiuçou cinquenta discursos proferidos pelo presidente ao longo de oitenta dias de pandemia, de 12 de março, o marco zero da quarentena nacional, a 30 de maio.
Entre falas na entrada e saída do Palácio da Alvorada, pronunciamentos oficiais, lives semanais e entrevistas coletivas, cerca de 78 000 palavras foram transcritas e analisadas. “A partir de sua retórica, depreende-se que Bolsonaro é um sujeito que enxerga o mundo em dois polos: quem está com ele e quem está contra, os mocinhos e os bandidos”, avalia o professor de comunicação Ben-Hur Demeneck, da Universidade de São Paulo. Para reforçar a posição perante os aliados, não hesita em distorcer verdades e se fazer de vítima. “Ele trabalha com valores absolutos, em um discurso energético e impactante”, diz o linguista Marcos Kalil, da Universidade Federal Fluminense. “A ideia é que quanto mais claro deixar saber quem é, o que quer e quem faz parte de seu time, mais forte ficará. Quanto mais separa o joio do trigo, mais o trigo se parece com ele.” Na movediça acepção da verdade — cuja busca, em teoria, é intrínseca à arte da retórica — que permeia o discurso bolsonarista, o que era para ser preto no branco ganha contornos vagos ou, simplesmente, coloridos de falsidade. A pedido de VEJA, a agência de checagem Aos Fatos verificou a veracidade de 881 declarações contidas nos pronunciamentos escrutados e constatou: o balanço é meio a meio. Para cada verdade concreta, Bolsonaro pronunciou uma inverdade ou um fato distorcido, como dizer que as mortes por Covid-19 eram inevitáveis ou alardear um inexistente consenso da classe médica sobre o uso da controvertida hidroxicloroquina (veja o quadro com o verbatim do presidente ao lado). “Bolsonaro tem papel atuante no ambiente de proliferação da desinformação”, ressalta a diretora de Aos Fatos, Tai Nalon. “Além das declarações falsas, há em seu discurso elementos verdadeiros misturados a exageros e informações insustentáveis, dificultando a distinção do que é factual.”
Esse lusco-fusco entre verdade e mentira, impressão e informação, é manifestado em tom coloquial e informal, com observações de cunho nitidamente pessoal, no ponto para evocar sentimentos e construir um conceito próprio de veracidade — que não necessariamente tem pé na realidade. “Até alguns anos atrás, a credibilidade das pessoas era atestada por fatores externos. Já as figuras públicas contemporâneas, ao misturar o público e o privado, ancoram a sua verdade na impressão de sinceridade”, diz o linguista Kalil. “O mais relevante é ser ou parecer autêntico.” Tanto na adequação da realidade a seus propósitos, fazendo valer a máxima de “a verdade sou eu”, quanto na forma de comunicar isso falando como gente comum, igual a todo mundo, Bolsonaro desenrola a teia típica de populistas como Donald Trump e Vladimir Putin, dois presidentes que também se desdobram para mostrar, seja lá como for, o brilho de suas certezas — mesmo que elas às vezes balancem ao sabor do vento político.
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Clique e AssineNa construção do personagem sincero e bem-intencionado que luta contra conspirações e inimigos diversos — a imprensa (200 ataques, ou mais de dois por dia), os governadores (140 menções críticas) —, Bolsonaro é mestre nas evasivas e na troca de soluções contra a crise por ataques, outra tática do manual do populismo. Faz parte do repertório evasivo apontar os responsáveis por problemas que nunca são dele, inimigos sorrateiros empenhados em solapar sua autoridade e ocupar seu cargo. Nesse contexto, os governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, ambos pré-candidatos declarados à Presidência em 2022, foram criticados o tempo todo pelo presidente na condução da pandemia; Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, e Romeu Zema, de Minas Gerais, duas das raras vozes resistentes à necessidade de isolamento social, são os únicos, no levantamento feito por VEJA, a receber menções positivas nas minguadas dez vezes em que o presidente aprovou ações estaduais.
A interação do presidente com os outros poderes melhora ou piora conforme as circunstâncias, como mostra o material examinado neste período de pandemia. “Bolsonaro fala mal de decisões que acredita invadir sua prerrogativa presidencial, mas, na prática, evita contestá-las”, observa o cientista político Paulo Kramer, da Universidade de Brasília. É o caso, por exemplo, do julgamento no STF que consolidou o poder dos governadores e prefeitos de decretar medidas de isolamento. “Isso permitiu ao presidente lavar as mãos e não impor uma restrição antipática”, acrescenta.
A expressão que mais aparece no repertório de Bolsonaro é “tem que”, assim mesmo, sem sujeito determinado: alguém tem que, não ele. “Essas e outras locuções não checáveis, não lineares, são formas de construir e reforçar familiaridade. Os apoiadores se sentem junto do líder”, explica Kalil. Insere-se nesse contexto a insistência do presidente em combater prioritariamente, na proporção de cinco para um, o “vírus do desemprego” e outros inimigos vagos e não o Sars-CoV-2. Um levantamento qualitativo feito pela consultoria de dados Quaest, que avalia a similaridade dos termos utilizados pelo presidente por meio de padrões captados por algoritmos, revelou que a palavra “doença” está frequentemente acompanhada de “desemprego”, “fome”, “violência” e “caos”. Nos discursos, Bolsonaro ataca a quarentena — “a política do fecha tudo” —, afirma ser “o único a se preocupar com o problema econômico desde o começo”, culpa a imprensa pela “histeria”, desanca governadores e entrega a Deus — evocado várias vezes como garantia de proteção — a solução do problema. “Desde o início do isolamento, Bolsonaro demonstra que não quer arcar com a culpa pelas consequências econômicas e sociais da paralisação”, diz Kramer.
Outras comparações quantitativas ajudam a compreender o pensamento presidencial em meio ao surto virótico mas também muito além dele — um apanhado de termos simplistas, disparados sem nenhuma profundidade, que, ressalve-se, aparecem nos pronunciamentos de outros expoentes da direita nacionalista, como o turco Recep Erdogan, o húngaro Viktor Orbán e, vale sempre insistir, Trump. Em números absolutos, o presidente brasileiro, nos discursos analisados, fala cinco vezes mais em povo do que em democracia, duas vezes mais em Exército do que em Congresso e duas vezes mais em Deus do que em ciência. “Bolsonaro é mestre em apelar para o sentimentalismo, a fé e o toque pessoal. Ao fixar falácias na opinião pública, parece querer dispensar a responsabilidade que lhe cabe e tentar emplacar um projeto de poder imune à contestação”, explica Demeneck, da USP. Faz parte da estratégia estabelecer um vínculo emocional com “seu povo” como forma de vencer resistências nas instituições, nos partidos e na classe política em geral.
Vem daí a facilidade de Bolsonaro — e Trump, Orbán, Erdogan e Putin — em jogar a ciência para o alto e apegar-se a teorias mais palatáveis, ainda que sem fundamento. Assim, enquanto a chanceler alemã Angela Merkel se preocupa com o fator R — o número de pessoas que cada pessoa pode infectar, uma medida imprescindível para a flexibilização da quarentena —, Bolsonaro insiste em louvar o exemplo da Suécia, que não fez quarentena, mesmo depois que a mortalidade no país por Covid-19 alcançou taxa dez vezes maior do que no resto da Escandinávia, que praticou o isolamento.
Os tuítes, como não poderiam deixar de ser, funcionam como plataforma dos disparos verbais de Bolsonaro quando deseja gritar. A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV)coletou 560 postagens publicadas pelo presidente durante este tempo sombrio, depois submetidas ao olhar de especialistas. “Para cada ambiente, o chefe do Executivo adota uma postura diferente. A porta do palácio é o lugar de embate político diário, de comprar atrito para se manter na pauta. Os discursos oficiais são mais cuidadosos e expressam posicionamento. No universo on-line, ele presta contas e orienta sua base política”, descreve o cientista político Felipe Nunes, da Universidade Federal de Minas Gerais, e diretor da Quaest. As conclusões extrapolam os números e estatísticas e perpassam o universo mais amplo — e escorregadio — da manipulação da palavra a favor de um objetivo, a persuasão, coluna vertebral da retórica.
Coube ao cônsul romano Cícero (106 a.C-43 a.C.) sistematizar a arte de convencer com palavras nas célebres Catilinárias, os discursos no Senado em que, tendo apenas a oratória como instrumento, desfiou um raciocínio moral e político que reforçou o poder de Júlio Cesar. Nos tempos modernos, nenhum orador superou Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico que manteve o país de pé no longo pesadelo da II Guerra à base de “sangue, suor e lágrimas”, cerne de um pronunciamento memorável. Como disse John Kennedy, outro esgrimista das palavras, Churchill “convocou a língua inglesa e a pôs na frente de batalha”. Brandir o idioma com paixão mobilizou multidões tanto para a brutalidade do nazismo quanto para a busca do sonho de igualdade civil de Martin Luther King. Nesse clube de oradores solenes, a retórica populista de Bolsonaro pode soar rasa e comezinha, como de fato é, mas nem por isso deixa de atrair multidões desencantadas da política tradicional, a quem soa bem tudo que parece desafiar o mesmo de sempre — ainda que sem compromisso com a verdade e a ética. É o caso de voltar a um trecho célebre da primeira Catilinária: O tempora! O mores!. Vivesse hoje, Cícero talvez reagisse com a igual indignação diante dos tempos e dos costumes de agora.
Com reportagem de Jana Sampaio
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692