2022, o ano que já começou
Seis meses depois de assumir o governo, com o desemprego em alta e a economia patinando, Bolsonaro se envolve em uma prematura campanha pela sua reeleição
Na reta final da última campanha presidencial, o então candidato Jair Bolsonaro disse que acabaria com a reeleição se vencesse a disputa. A promessa tinha dois objetivos: realçar sua pretensa superioridade ética sobre os adversários e reforçar seu discurso de rejeição aos políticos tradicionais, que não mediriam esforços para se perpetuar no poder. Empossado no Palácio do Planalto, Bolsonaro mudou de ideia. No último dia 20, afirmou que concorrerá a um novo mandato — a não ser que seja aprovada uma “boa reforma política”. A ressalva é de fancaria, já que não há a intenção de propor essa reforma, que nem sequer consta de seu programa de governo. Bolsonaro, que prometia personificar o novo, rendeu-se rapidamente aos encantos do poder. “Meu muito obrigado a quem votou e a quem não votou em mim também. Lá na frente, todos votarão, tenho certeza disso”, declarou no município de Eldorado (SP), onde morou quando criança. No mesmo dia, na capital paulista, durante um encontro de evangélicos, acrescentou: “Se não tiver uma boa reforma política e se o povo quiser, estamos aí para continuar mais quatro anos”.
Desde que a emenda da reeleição foi promulgada, em 1997, no governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, todos os presidentes eleitos disputaram e ganharam um segundo mandato. Não à toa, costuma-se dizer que o mandato presidencial no Brasil é de oito anos, com um referendo no meio. Mesmo assim, o anúncio de Bolsonaro causou surpresa. Primeiro, porque ele descumpriu uma promessa de campanha, naquilo que em outros tempos — e outros governos — seria considerado estelionato eleitoral. Segundo, porque assumiu a condição de candidato antes mesmo de completar seis meses de mandato. É um recorde de precocidade. “Não é usual esse grau de antecipação. Grau de lançamento precoce antes desse foi o do Lula, que partiu para um comício quando ficou claro que o mensalão ia pegar seus principais auxiliares”, diz o cientista político Sérgio Abranches. O mensalão foi descoberto em 2005, no terceiro ano do primeiro mandato do petista. “Ele saiu do palácio, foi percorrer o Brasil e se distanciou do grupo que estava sendo acusado. Com isso, recuperou a popularidade. Mas, nesse caso, a economia estava bombando, era outro contexto. E, ainda assim, o Lula apenas saiu em comício, e não falou em candidatura.”
O contexto de Bolsonaro, de fato, é outro. Houve retração da economia no primeiro trimestre deste ano. O desemprego continua em alta e atinge 13 milhões de brasileiros. O governo sofre derrotas sucessivas no Congresso. E a popularidade do presidente e de sua gestão está em queda. Uma pesquisa recente do Ibope encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) revela que o porcentual de quem desaprova a maneira de governar do presidente já supera o de quem aprova: 48% a 46%. O contingente daqueles que não confiam no presidente também ultrapassou o daqueles que confiam: 51% a 46%. A queda de popularidade foi mais acentuada nas famílias de baixa renda e entre pessoas com até a quarta série do ensino fundamental. As dúvidas são sobre como Bolsonaro reagirá a esses números. O candidato à reeleição sobressairá ao presidente da República? Medidas estruturantes — e impopulares — serão deixadas de lado para não melindrar determinados grupos de eleitores? Bolsonaro fará “o diabo para vencer a eleição”, como disse certa vez a petista Dilma Rousseff, mesmo que para isso seja obrigado a jogar o país de volta à recessão?
Bolsonarista de proa, o deputado Marco Feliciano (Podemos-SP) responde a essas perguntas da seguinte forma: “O presidente começou a perceber que vai arrumar a casa e que as reformas vão passar. É um feito que ninguém acreditava que poderia acontecer. E não dá para arrumar a casa e abandoná-la. A reeleição é um fato”. Desde o início do governo, Bolsonaro só propôs a reforma da Previdência, que avança graças, principalmente, aos esforços do Congresso. O presidente tem preferido uma agenda mais comezinha. Ele já se dedicou a discutir golden shower, higiene peniana, multas de trânsito e tomada de três pinos. Parece alheamento, mas é estratégia. Bolsonaro faz questão de se apresentar como um homem comum — “gente como a gente”. “Ele dá importância a coisas que parecem pequenas, mas que interessam ao povo. Ele tem essa personalidade de querer olhar tudo, e comentar, e fuçar. E ele foi eleito assim. Teve 57 milhões de votos assim”, explica o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno.
Os possíveis adversários de Bolsonaro acham que essa pauta miúda dificultará a reeleição. Por isso, têm feito o contraponto sobretudo na área econômica. Em sua edição passada, VEJA revelou que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), prepara um pacote de medidas para reaquecer a economia e incrementar programas sociais, inclusive na educação, área em que a atuação do governo é desaprovada por 54% dos entrevistados, segundo a pesquisa CNI/Ibope. De olho numa candidatura presidencial, Maia disputa com Bolsonaro a paternidade da eventual aprovação da reforma da Previdência. Favorito para representar o PSDB na sucessão, o governador de São Paulo, João Doria, também está na linha de frente das negociações sobre as mudanças previdenciárias. Uma de suas prioridades é garantir a inclusão de estados e municípios nas novas regras, enquanto Bolsonaro lavou as mãos com relação a esse ponto. Antes restrita às coxias, a disputa entre o presidente e o governador começou a ganhar ares públicos. O pano de fundo foi um assunto lateral: a sede do Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1. Bolsonaro quer transferir a prova do autódromo de Interlagos, em São Paulo, para Deodoro, no Rio de Janeiro. “O que a imprensa diz é que ele (Doria) será candidato a presidente em 2022. Então, ele tem de pensar no Brasil, e não no seu estado. Então, com toda a certeza, ele não vai se opor”, disse o presidente.
O governador rebateu: “Fórmula 1 não é uma decisão política. É decisão econômica. Não é hora de tratar de eleição. É hora de fazer gestão”. Doria ainda zombou da infraestrutura de Deodoro, numa estocada que também acertou o governador do Rio, Wilson Witzel, outro que sonha em disputar a Presidência: “Recomendo que visitem e sobrevoem o local, até porque não há estrada, só dá para chegar lá a cavalo. Não quero desmerecer a opção do Rio, mas não há nada lá, nem acesso, nem energia, nem saneamento”.
De todos os possíveis adversários de Bolsonaro em 2022 (veja o quadro ao final da reportagem), hoje o que aparece com mais estabilidade — e vem se mexendo de forma planejada — é o governador de São Paulo. Doria montou um secretariado com cara de ministério, atraindo nomes como Henrique Meirelles, na Fazenda, e Rossieli Soares, na Educação. Tem se dedicado com o mesmo empenho a duas frentes simultâneas: segurança e economia. Na primeira, apresenta números recordes de prisões e operações policiais. Na segunda, dedica-se a atrair investimentos para o estado, abrindo um escritório comercial na China e segurando com um pacote de bondades montadoras que iam fechar as fábricas em São Paulo. Outra vantagem de Doria é o seu bom trânsito político com os partidos e parlamentares, um jogo que Bolsonaro abomina. A turma ligada ao presidente já percebeu que o até outro dia aliado pode representar um problema em 2022. Assim como Rodrigo Maia, que é tratado de forma jocosa nas redes sociais, o governador paulista instantaneamente se tornou alvo das hostes bolsonaristas depois da divergência pública com o presidente. E quem deu a primeira mordida foi ninguém menos do que Carlos Bolsonaro, o pit bull, que o chamou de “isentão ensaboado”, no Twitter. Assim, antecipam-se debates e agressões inúteis que relegam os grandes temas a um perigoso segundo plano.
Bolsonaro anunciou a intenção de concorrer à reeleição dois dias depois de Donald Trump (a quem dedica um misto de admiração e subserviência) lançar sua campanha por mais um mandato nos Estados Unidos. A diferença está apenas no tempo de cada um. Trump tentará o sucesso nas urnas no próximo ano, enquanto Bolsonaro, só em 2022. Já as semelhanças são conhecidas. Desde o início de sua gestão, Trump dedica-se a manter aceso o jogo da polarização na sociedade americana, algo que Bolsonaro segue por aqui de maneira bastante clara. Nesse aspecto, lançar a reeleição de forma prematura deixa o capitão ainda mais livre para intensificar o Fla-Flu político. Para o candidato Bolsonaro, pode ser até bom. Para o Brasil, que precisa do presidente Bolsonaro e de estabilidade, certamente não. O aspecto negativo é que, com o discurso eleitoral antecipado, se deixa de avaliar a Presidência, com dados matemáticos e racionais, para adentrar no terreno das paixões políticas. Um dos colaboradores da campanha do presidente em 2018, o cientista político Paulo Kramer reconhece que a aprovação de uma reforma política, que poderia levar Bolsonaro a desistir da reeleição, jamais foi cogitada de verdade. “Era um segredo de polichinelo. Todo mundo já estava esperando a candidatura à reeleição. Seria de espantar se ele dissesse o contrário. Nesse caso, o governo acabaria mais cedo e todo mundo passaria a ficar de olho em quem iria colocar o pescoço para fora.”
Com a corrida presidencial declarada aberta, as peças começaram a se mexer — em todos os níveis, e não apenas entre os que serão candidatos a presidente. Um dos expoentes da bancada evangélica, o deputado Marco Feliciano está ciceroneando Bolsonaro em encontros religiosos pelo país. O último deles foi exatamente a Marcha para Jesus, em São Paulo, quando o presidente anunciou a intenção de tentar a reeleição. “O público evangélico é imenso e, para conversar com ele, é necessário correr o Brasil. Essa é a base de sustentação fiel e que não quer nada em troca. Só queremos que o presidente mantenha o discurso da pauta de costumes e que blinde a nossa família, que é a família tradicional”, afirmou Feliciano. O deputado tem um projeto definido: ser escolhido para vice na chapa à reeleição, como informa a coluna Radar. Hoje, o cargo é exercido pelo general Hamilton Mourão, que já foi acusado pelo vereador Carlos Bolsonaro de conspirar para assumir o poder. “Só sei que o Mourão não deve dar mais. As pessoas precisam entender a diferença entre fidelidade e lealdade. Os militares no governo são fiéis, mas não são leais, pelo menos alguns deles. Foi essa a minha briga com o Mourão e com o Santos Cruz”, diz Feliciano.
Enquanto parte para a prematura campanha, Bolsonaro ainda sofre com uma clara divisão dentro do governo. A alta cúpula militar continua chateada com a maneira desrespeitosa como o general Santos Cruz, demitido da Secretaria de Governo, foi tratado. Alguns militares também estão incomodados com a falta de foco na gestão e a prioridade dada pelo presidente a assuntos como cadeirinhas de bebê em automóveis, enquanto o desemprego não cede. “Uma hora, a questão do desemprego causará um frisson muito maior”, avalia um oficial que ocupa um posto importante no governo. “Essa deveria ser a nossa prioridade”, diz.
Curiosamente, uma antecipação da campanha pode voltar a construir amálgamas entre os dois grupos, o ideológico e a turma que bate continência. Um ponto de união entre todos é a ojeriza à possibilidade de uma volta da esquerda ao poder. O assunto Lula tira os militares mais equilibrados do governo do sério. Quando era comandante do Exército, no ano passado, o general Eduardo Villas Boas não escondeu o desconforto que causaria uma eventual candidatura do ex-presidente Lula, já condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, mas ainda solto. Hoje, Villas Boas é assessor especial da Presidência. Já o general Augusto Heleno emitiu recentemente uma nota em defesa do ministro Sergio Moro, suspeito de parcialidade no julgamento de Lula. Antes, num café da manhã com Bolsonaro e jornalistas, Heleno chamou o ex-presidente petista de canalha, entre outros adjetivos desabonadores, e deu murros na mesa. Pode ser coincidência, mas o fato é que, depois das manifestações dos dois generais, o Supremo deu decisões desfavoráveis a Lula. Na semana passada, a Segunda Turma do STF negou, por 3 votos a 2, mais um pedido de soltura do petista.
A três anos e quatro meses da próxima eleição presidencial, qualquer prognóstico sobre quem serão os candidatos ou quem sairá vencedor não passa de mero exercício de especulação. Política é como nuvem e muda ao sabor dos ventos, já dizia Magalhães Pinto, ex-governador de Minas. Em maio de 1994, Lula tinha 23 pontos de vantagem sobre Fernando Henrique Cardoso, que acabou vencendo a eleição daquele ano no primeiro turno. Em fevereiro de 2002, a ex-governadora Roseana Sarney, em trajetória ascendente, assumiu a liderança nas pesquisas ao lado de Lula, que então derrapava na preferência popular. Alvo de uma ação da Polícia Federal, Roseana foi obrigada a desistir da candidatura. Já o petista conquistou o seu primeiro mandato. A própria trajetória de Bolsonaro é exemplar. Expoente do baixo clero da Câmara, ele obteve apenas quatro votos na disputa pelo comando da Casa em 2017. Àquela altura, ninguém levava suas pretensões presidenciais a sério — com exceção dele mesmo. No ano seguinte, Bolsonaro se elegeu presidente da República com 57,7 milhões de votos.
Ninguém sabe se o presidente manterá esse patrimônio eleitoral até 2022. Espera-se apenas que, enquanto a eleição não chega, ele governe mais do que faça campanha. E governe para todos os brasileiros — não para nichos histéricos ou que gostam da dinâmica histriônica. Os reais desafios do país, aqueles que quase nunca aparecem em suas manifestações oficiais, não podem esperar.
Os candidatos a candidato
Se as eleições fossem hoje, o próximo presidente da República provavelmente seria um dos oito personagens abaixo. A tradição, porém, mostra que, a mais de três anos do pleito, qualquer prognóstico sobre candidaturas é mero exercício de especulação
JAIR BOLSONARO (PSL)
Durante a campanha presidencial, Bolsonaro disse que pretendia acabar com a reeleição. Empossado, mudou de ideia. A dez dias de completar seis meses no cargo, anunciou que quer disputar um novo mandato, a não ser que seja aprovada “uma boa reforma política”. Como não há notícia de que o governo ou o Congresso patrocinarão essa reforma, uma nova candidatura em 2022 é considerada barbada
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CIRO GOMES (PDT)
Com três derrotas em eleições presidenciais no currículo, o ex-ministro quer se consolidar como a maior força do campo da esquerda, suplantando o PT. Para tanto, tem criticado as gestões petistas e feito o mea-culpa que Lula e Dilma, dos quais foi aliado, se recusam a fazer. De temperamento mercurial, Ciro cultiva boas relações com setores do empresariado e se vende como alguém capaz de tirar o Brasil do atoleiro
SERGIO MORO (sem partido)
É o ministro mais popular do governo. No meio político, sua posse no Ministério da Justiça foi encarada, em Brasília, como um rito de passagem para a nomeação ao Supremo Tribunal Federal ou a candidatura presidencial em 2022. Desde as revelações das conversas que manteve com procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, a atuação de Moro como juiz está em xeque. Já seu prestígio como político segue em alta
FERNANDO HADDAD (PT)
Derrotado no segundo turno da eleição passada, quando recebeu 47 milhões de votos, o ex-ministro é o candidato natural do PT. Um de seus desafios é vencer a resistência da cúpula do partido, que tem cobrado dele, desde a campanha de 2018, um discurso mais radical do que ele gostaria. Na comparação com certos correligionários, Haddad é um moderado. Tão moderado que ganhou de Lula o apelido de “petista com cara de tucano”
RODRIGO MAIA (DEM)
O deputado cogitou disputar a eleição presidencial de 2018, mas foi obrigado a desistir porque não conseguiu deslanchar nas pesquisas. Não atingiu nem mesmo o piso que considerava pré-requisito para entrar no páreo: 5% da preferência do eleitorado. Ele aposta numa agenda, que tocará como presidente da Câmara, capaz de reaquecer a economia. Se seu plano der certo, acha que poderá ser o escolhido pelos donos do dinheiro
WILSON WITZEL (PSC)
Depois de surpreender na disputa pelo governo do Rio, acha que consegue replicar o papel de azarão e vencer a sucessão presidencial. Sua atuação até agora emula a de Jair Bolsonaro, com direito a flexões, discurso radical contra a bandidagem e apologia do uso de armas de fogo. Filiado a um partido nanico, é um completo desconhecido fora do Rio, mas acredita que pode repetir em 2022 o fenômeno Bolsonaro
JOÃO DORIA (PSDB)
O governador venceu a disputa interna com tucanos veteranos e assumiu o controle do partido, movendo-o para o campo da centro-direita. Ele aposta que o desempenho econômico de São Paulo sob sua gestão será superior ao do país. Ao contrário de Bolsonaro, tem mantido pontes com presidentes de partidos, inclusive do notório Centrão, e com os caciques do Congresso. Também faz do antipetismo uma bandeira de campanha
LUCIANO HUCK (sem partido)
Também pensou em concorrer em 2018, estimulado por correntes que queriam quebrar a polarização entre Bolsonaro e PT. Tem a seu favor, entre outros, o fato de manter laços com movimentos de renovação política e ser extremamente popular. Como apresentador de televisão, cultivou a imagem de pessoa preocupada com as mazelas do país. Transita com desenvoltura entre endinheirados
IMPONDERÁVEL
Três anos antes da eleição, Fernando Collor (1990-1992), Fernando Henrique (1995-2002), Dilma (2011 a 2016) e Bolsonaro nem sequer apareciam no cenário de prováveis candidatos a presidente. Collor ganhou notoriedade como “caçador de marajás”, Fernando Henrique capitalizou os resultados fantásticos do Plano Real, Dilma foi catapultada pela popularidade de Lula e Bolsonaro incorporou o político antissistema
Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641
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