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Salman Khan: “O ensino on-line veio para ficar”

O professor celebridade, admirado por Bill Gates e seguido por milhões mundo afora, ensina os ingredientes de uma boa lição via internet

Por Monica Weinberg Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h44 - Publicado em 31 jul 2020, 06h00

Formado em matemática e ciências da computação pelo Instituto de Tecnologia de Massachusets (MIT), o americano Salman Khan, ou Sal, como é mais conhecido, traçava carreira ascen­dente no mercado financeiro quando começou a dar aulas para uns primos, postou no YouTube e passou a chamar atenção com seu estilo direto e entusiasmado. Em 2009, deixou o frenesi das ações, que aliás adorava, para fazer algo que descobriu gostar ainda mais: ensinar. Assim surgiu a Khan Academy, a maior escola virtual do planeta, com mais de 100 milhões de alunos (muitos brasileiros), que acessam lições sobre tudo, de graça. Com a pandemia, a procura multiplicou por seis. Nestes últimos tempos, Sal, 43 anos, tem papeado com frequência com seu grande fã e financiador Bill Gates, o dono da Microsoft, com quem compartilha atualmente duas obsessões: chegar a uma vacina contra o novo coronavírus e evitar que as crianças percam o barco da educação. Sal falou a VEJA via Zoom, excepcionalmente sentado durante uma hora e dez minutos no escritório de sua casa, em Mountain View, Califórnia, onde vive com a mulher e os três filhos.

Por que a experiência de aulas on-­line tem deixado tanta gente frustrada? Ninguém estava preparado para uma mudança tão rápida e profunda, capaz de chacoalhar o modo como as pessoas sempre ensinaram e aprenderam. Boa parte dos professores não tinha noção de como conduzir uma aula on-line e fez o que instintivamente se faz: repetiu o modelo tradicional, passo decisivo para não dar certo, já que estamos falando de uma linguagem inteiramente nova. Para as crianças também foi doloroso. Elas precisaram se adaptar a jato para conseguir se virar em ambientes cheios de parentes, barulho e estímulos que levam à distração. As condições eram desfavoráveis. Pesquisas mostram que só aqueles 10%, 20% que extraem motivação de si próprios têm o aparato para se sair bem.

Mesmo com a abertura das escolas, em muitos casos as aulas on-­line seguirão em um sistema híbrido. Como fazer com que funcionem daqui para a frente? O mandamento número 1 é fugir da convencional aula-­palestra, com o professor tagarelando durante uma hora, sem instar a turma a participar ou engatar em uma atividade, um desafio qualquer. Se esse esquema passivo já é entediante numa sala de aula, imagine no Google ou no Zoom. A chatice ali se amplifica.

Por que suas aulas não costumam ter mais do que dez minutos? Eu me baseio na neurociência. Ela constatou que a janela humana de atenção não dura mais do que esse intervalo diante de alguém que se põe a falar sem parar — à exceção, claro, daqueles discursos extraordinárias proferidos por exímios oradores. Agora, se o aluno é incentivado a solucionar problemas, tem metas a cumprir ao longo da aula, precisa interagir com os colegas em busca de respostas e expor seu pensamento, aí pode dar muito certo. Quanto mais interativa for a aula, melhor.

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Interatividade tem a ver com música, ilustrações, filmes durante a aula? Não há comprovação nenhuma de que ela precise ter cara de show — uma tentação constante que, no lugar de ajudar, às vezes só serve para tirar o foco do essencial. O que funciona mesmo é pôr a garotada para participar.

Então a opção pela câmera desligada, recurso de muitos colégios para tentar manter certa ordem no ambiente virtual, é um equívoco? É um erro, sim. Desativar a câmera traz como resultado justamente o avesso do que se quer de uma boa aula on-line: a maior interação possível. É diferente com os adultos. Eu, por exemplo, faço minhas reuniões com a câmera fechada, caminhando no meio da rua, e esbarro o tempo todo com colegas do Vale do Silício na mesma situação. Acham que assim produzem mais. Mas com as crianças é diferente: elas precisam de motivação externa, do olho no olho, de ser chamadas pelo nome. A distância impõe um gigantesco esforço de conexão.

“Os pais devem se preocupar em ajudar a preservar o hábito do estudo. Este, tão difícil de adquirir e fácil de perder, não é apenas vital para o aprendizado na escola, mas por toda a vida adulta”

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Vale a pena aplicar provas em casa? Depende muito do tipo de prova. Há vários testes pensados para ser resolvidos de forma colaborativa. Outros exigem uma elaboração de alta complexidade e, com isso, o aluno não pode simplesmente copiar respostas. Mas a múltipla escolha pura e simples, como algumas escolas fazem, é perda de tempo.

Pesquisas mostram que, com a pandemia, essa turma pode perder até um ano de escola. É preocupante? A maior preocupação que os pais devem ter agora é em relação à preservação do hábito de estudo. Este, que é tão difícil de adquirir e fácil de perder, não é apenas vital para o aprendizado na escola, mas por toda a vida adulta. Se o aluno conseguir exercitar meia hora, não mais do que isso, três matérias fundamentais — matemática, leitura e escrita —, provavelmente terá um regresso à normalidade, seja lá quando for, mais suave e tranquilo.

Como as escolas devem se organizar para receber os alunos de volta? Para retomar a rotina em algum grau, será preciso entender em que estágio cada aluno está, um trabalho de formiguinha, individualizado, sem o qual não dá para cogitar seguir adiante. Preparem-se para muita revisão. Afinal, não dá para erguer um edifício sobre uma base frágil. Conhecimento se constrói sobre conhecimento.

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Como minimizar o aprofundamento da distância escolar entre alunos mais ricos e mais pobres na pandemia? As autoridades devem se mexer com toda a pressa para que todos tenham pelo menos acesso a um computador com conexão. Uma multidão mundo afora não está acompanhando as aulas porque não possui o equipamento ou vive em condições absolutamente adversas para o estudo: muitos parentes em casa, pais desempregados. Podem ser 10%, 20% do total, mas o erro é exatamente achar que se trata de um problema unicamente deles. Pois se tanta gente ficar para trás na escola, o país como um todo terá um freio para avançar.

O senhor acha que os alunos estão desenvolvendo as tão celebradas habilidades socioemocionais do século XXI ao ter de se virar sozinhos em casa? A tentação é responder que sim, mas há nuances. As habilidades de alimentar a própria motivação e de afiar a independência serão valiosas para os que conseguirem chegar a esse ponto. Mas há outra dimensão: os estudantes precisam de interação social para ter uma educação completa.

Em suas lives, pais e alunos entram cheios de dúvidas. O que mais os aflige hoje? Nunca vi os pais tão preocupados com a educação dos filhos, um efeito colateral bom da crise. Eles têm procurado professores, diretores, querem saber como estão se planejando e cobram qualidade. Já os estudantes, incluindo aí os brasileiros, revelam angústia em relação ao futuro tão incerto. Quando recebi Sundar Pichai, o CEO do Google, eles lhe fizeram muitas perguntas práticas. Quais as melhores carreiras a seguir numa hora como esta? Qual o nível de stress numa profissão como a dele? Quando os empregos vão voltar com tudo?

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O que se depreendeu de mais relevante na live que fez com Bill Gates? Ele bate em duas teclas: encontrar um jeito de as crianças não ficarem para trás em seu aprendizado, entre outras coisas pondo mais dinheiro na sala de aula, e chegar à vacina contra o novo coronavírus, custe o que custar.

Como foi seu primeiro encontro com Gates? Uma pessoa que na época investia na Khan Academy, bem no início da história, estava em um evento e me ligou, animada: “Gates está no palco falando de você, Sal”. Um tempinho depois recebo uma ligação de Seattle. Era ele. Só conseguia pensar: “É Gates-Gates-Gates. Não posso decepcioná-lo”. Descobrimos, curiosamente, que estávamos lendo o mesmo livro, O Guia de Química Orgânica para Completos Idiotas. Ficou claro também que nenhum de nós acredita na tecnologia como um fim em si, mas como uma ferramenta que pode ser imensamente útil para equacionar múltiplas necessidades humanas.

Por que abastecer a sala de aula com tablets e laptops não tem ajudado a virar o jogo na educação? Exatamente porque sempre se ambicionou a tecnologia na escola antes de pensar em como ela se prestaria a melhorar o ensino. É como se em muitos casos estivesse lá como um troféu: “Ei, olha como eu sou uma escola moderna”.

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Como ela pode ser verdadeiramente transformadora? Um bom software ajuda a individualizar o ensino, ao permitir a cada aluno assistir a lições gravadas em seu próprio ritmo. Outro aspecto revolucionário é fazer com que as aulas dos melhores professores possam ser acessadas por qualquer estudante, não importa onde esteja, desde que tenha uma conexão. Há pequenos municípios no Brasil, por exemplo, onde não há um mestre formado em cálculo. Com um clique, o estudante o encontra.

“Gates e eu não acreditamos na tecnologia como um fim em si, mas como uma ferramenta imensamente útil para equacionar múltiplas necessidades humanas”

O ensino on-line veio para ficar? Como matemático, não gosto de embarcar em futurologia. Não sabemos quanto tempo a pandemia se fará sentir entre nós para projetar suas consequências. Hoje, é estranhíssimo apertar a mão de alguém, mas e daqui a alguns meses, ainda será? Dito isso, as aulas on-­line receberam um empurrão inédito e entraram para o mapa numa velocidade que, sem crise, levaria pelo menos uma década. Sim, elas vieram para ficar. Resta saber em que medida.

O senhor acredita no fim da escola presencial em um longo prazo? De jeito nenhum. Acho, porém, que ela precisa ser bastante aprimorada, porque ainda se finca em tradições antiquadas que espelham as necessidades de um mundo que não existe mais. Mas sou um fervoroso defensor do convívio social no processo de aquisição do saber e da figura do professor que, frente a frente com sua turma, consegue promover um salto coletivo de conhecimento. A tecnologia não substitui o mestre, mas lhe dá um poderoso instrumento para ensinar.

A crise sanitária deixará alguma boa herança às escolas? Ela ajudou a romper com um conceito petrificado, de que a criança só pode aprender na escola, naquele tempo e espaço. A tecnologia liberta as sociedades dessa ideia e reafirma outra: com tanto conhecimento disponível e evoluindo, as pessoas devem aprender o tempo todo. Por outro lado, os professores sairão dessa bem mais preparados para se virar no ambiente on-line, algo de valor incalculável para esta e as próximas gerações.

Sente falta do mercado financeiro? Às vezes, vejo a movimentação da bolsa e me dá aquela coceira. Também observo meus colegas no Vale, alguns já na casa dos bilhões, e eu, um professor. Bem pago, é verdade, mas professor. Esse tipo de pensamento vem e logo vai embora. A verdade é que sou um sortudo.

Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698

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